O anti-americanismo vigente na praça pública portuguesa não é novo nem começou com a eleição de Donald J. Trump. Integra, aliás, uma longa tradição de anglofobia, cuja importação de movimentos culturais contra o capitalismo corresponde ao maior expoente, mas cujo acinte em torno de cada novo presidente americano se vai repetindo, ora com democratas, ora com republicanos. Isso nota-se na retórica partidária (os lá-lás de Catarina Martins contra o imperialismo) e no comentariado instalado. As reações à entrevista do embaixador George Glass, no passado fim-de-semana, ao semanário Expresso, são disso prova. De uma forma lamentável, as únicas análises com o mínimo de senso que li até agora foram assinadas aqui, no Observador, por Bruno Cardoso Reis e André Abrantes Amaral. Outras publicações não se coibiram, inclusivamente, de promover análises à entrevista e à relação de Portugal com os Estados Unidos e a China feitas por membros de conselhos de administração de empresas com capital chinês – donos evidentes de uma espetacular isenção.

O embaixador norte-americano limitou-se a dizer o mesmo que vem dizendo desde que chegou a Lisboa: há uma escolha a ser feita entre os aliados ocidentais e os parceiros económicos do Partido Comunista Chinês. Este é um discurso repetido à porta fechada e em intervenções públicas com mais de um ano. Que o país mediático se preste a fazer disso um escândalo diplomático é só mais um incentivo ao encolher de ombros como modalidade de contemplação da nossa paisagem. Sem querer puxar exageradamente dos galões, estou há mais de um ano a chamar à atenção para esse choque de perspetivas entre a política externa do atual Governo e o Departamento de Estado de Trump (em resumo aqui e, mais concretamente, aqui).

O facto de estarmos à beira de eleições nos Estados Unidos da América certamente favorece uma tendência de maior hostilidade à Casa Branca entre os nossos grisalhos comentadores, mas daí a acusar um país aliado de “bullying“, “chantagem”, “insulto” e “ameaça”, quando Glass falou apenas na necessidade de “escolher” – coisa que Santos Silva e Marcelo ironicamente confirmaram nas suas reacções –, cai já no exagero. Em 2019, José Manuel Durão Barroso também afirmou que, mais cedo ou mais tarde, a Europa teria de escolher entre a América e a China. Não me lembro de ouvir alguém acusá-lo de bullying ou ameaça.

Num ambiente de guerra comercial e estratégica (EUA vs China), a diplomacia ganha um pendor transacional menos nobre, mas não exatamente excecional. Os embaixadores chineses confundem-se constantemente com agentes de relações públicas da Huawei quando falam sobre as redes 5G no espaço europeu. O embaixador da China em Berlim chegou a utilizar as exportações automóveis alemãs como trunfo, caso o governo de Merkel fechasse a porta ao gigante chinês das comunicações. Disso, curiosamente, os nossos analistas de política internacional não falam.

Os americanos, por sua vez, continuam imersos num paradoxo. Enquanto a atitude de Trump for verbalmente anti-atlântica, os seus emissários continuarão a sofrer dificuldades em convencer governos como o português. Vir falar em cooperação entre o Tesouro americano e Bruxelas na regulação do investimento chinês não tem o mínimo de credibilidade enquanto se continuar a bater palmas a gente como Farage ou Le Pen. Nada, estou certo, que George Glass ainda não tenha reparado.

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