Para um português deste tempo, a imagem não oferecia outra coisa que não uma sensação de amarga ironia. No anoitecer de Washington, uma multidão silenciosa aproximava-se da escadaria do Supremo Tribunal para homenagear Ruth Bader Ginsburg, falecida faz hoje uma semana, com 87 anos. Cânticos hebraicos foram entoados, cartazes empunhados mas somente sussurrados e velas, milhares de velas, foram deixadas junto a ramos de flores à medida que a noite assentava.

Ontem, Ginsburg tornou-se na primeira judia e na primeira mulher na história dos Estados Unidos a ser velada na colina do capitólio, onde moram o senado e o congresso norte-americanos. A morte da distinta juíza, filha de vendedores de chapéus e estolas em Brooklyn, cruza-se, neste estranho 2020, com uma série de eventos definidores para o seu legado e para a nossa existência: lá, a recandidatura de Donald J. Trump à Casa Branca e a eclosão de uma guerra cultural alegadamente progressista; cá, a erupção de um fenómeno anti-sistémico e a exposição de uma Justiça imerecedora de maiúscula, capaz de albergar os piores dos piores, juízes feitos traficantes de tribunais.

Quando olhei para as fotografias das milhares de velas acesas por Ruth Bader Ginsburg foi esta amargura que saboreei: a democracia americana, imersa em problemas, ainda consegue prestar tributo a uma figura feita no serviço às suas instituições fundadoras; a República Portuguesa, pelo contrário, tem um luto a fazer, não por alguém, mas por si própria; servindo a obscenidade da operação Lex como exemplo suficiente, e sendo escusado falar da tentativa de colocar um ex-porta-voz de Sócrates no nosso Tribunal Constitucional, também este ano.

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