“É necessário que aqueles que vão construir amem o espaço, a luz e o próximo.”
Sophia de Mello Breyner Andresen
Em ano de eleições autárquicas vale a pena voltar ao pensamento de grandes urbanistas cujo espírito e obra permanecem atuais, de tal forma são intemporais.
Li o pequeno-grande livro que Charles-Édouard Jeanneret-Gris, mais conhecido pelo pseudónimo Le Corbusier, dedicou aos alunos de arquitetura de todo o mundo e a editora Cotovia publicou pela primeira vez em Portugal no ano de 2003, fazendo duas edições posteriores, a última das quais em 2016.
Le Corbusier, arquiteto suíço naturalizado francês, foi também urbanista, designer, escultor, pintor e escritor. O seu colossal legado patrimonial, artístico e intelectual merece ser conhecido em profundidade e, uma vez visitado, apetece revisitá-lo através dos seus escritos, para podermos ir com ele ao detalhe do detalhe.
“Le Corbusier conversas com os estudantes das escolas de arquitetura”, eis o título de um livro fascinante pela clareza com que o autor fala dos temas críticos no urbanismo e na arquitetura. Ele, que fez incontáveis estudos de urbanismo para cidades tão diversas como Moscovo, Argel, Montevideu, São Paulo, Buenos Aires, Rio de Janeiro, Barcelona, Antuérpia, Genebra e Estocolmo; ele que viveu o tempo das grandes guerras e construiu no pós-guerra de forma consistente, fazendo uma ‘utilização eloquente do betão’; ele que escreveu e criou em França durante todo o tempo que durou a ocupação e declinou propostas e ofertas para criar um ‘atelier-livre’ ou para desenhar um ‘ensino Corbu’ (que acabaria por se estabelecer de forma espontânea em 1927, depois da publicação da “Obra Completa L.C.”); ele que tinha tanto para dizer, dar e ensinar, preferiu escrever um pequeno “livrinho simpático e cuidado para satisfazer os jovens”.
Em ano de eleições, insisto, vale a pena ler um livrinho que mais parece um manual de instruções sobre o que não deve ser feito nas cidades, nos campos, no país. Vale a pena procurá-lo nas livrarias ou encomendá-lo à Cotovia enquanto é tempo, pois a decisão de fechar a editora (decisão tremendamente difícil, mas incrivelmente corajosa e livre) implica que, em breve, este e outros livros igualmente preciosos deixarão de existir no mercado. Acredito que este livro pode ser um contributo valioso tanto para quem elege como para quem se quer fazer eleger nas próximas autárquicas, independentemente das ideologias políticas e das estratégias partidárias.
Le Corbusier começa em modo manifesto, curiosamente aplicável à realidade atual do nosso país. Cito-o de forma abreviada:
“Gostaria de levar ao exame de consciência e ao arrependimento aqueles que se dedicam a destruir ou a combater aquilo que há de mais belo neste país e nesta época: a invenção, a coragem e o génio criador particularmente ligado às coisas da construção, essas coisas em que coexistem razão e poesia, em que se aliam sabedoria e empreendimento”.
Le Corbusier recorre a André Gide, escritor francês que foi Nobel da Literatura em 1947, por estar completamente alinhado com as suas convicções: “Sou contra tudo aquilo que diminui o Homem, tudo aquilo que contribui para o tornar menos sábio, menos confiante e menos vivo. Não aceito que a sabedoria ande sempre atrelada à lentidão e à desconfiança”.
Le Corbusier teve uma vida longa e fecunda. Nasceu em 1887 e morreu em 1965, sendo considerado um dos mais importantes arquitetos do século XX, a par de Frank Lloyd Wright, Alvar Aalto e Mies van der Rohe, entre outros. Considerava, já no seu tempo, que a incoerência no espaço edificado tinha atingido o auge. Mal sabia o que estava para acontecer nas décadas seguintes e num século que já não conheceu.
“Um espaço edificado novo e invasor, imundo, burlesco, boçal, nefasto e feio, conspurcou paisagens, cidades e corações. Ultrapassaram-se os piores limites”, disse Le Corbusier sobre França. Que diria se pudesse visitar o nosso país hoje, com tempo para o percorrer de norte a sul e, depois, ir do litoral ao interior. Veria que vivemos num país onde se acumulam horrores e o melhor e mais belo é forçado a uma convivência infeliz, tóxica, asfixiante com a pior e mais desqualificada obra construída por mão humana.
Nas casas, nas ruas, nas cidades, nos subúrbios, nas periferias e nos campos muito se degrada e desagrega em Portugal, muito do que foi sendo construído e desenhado “insulta o senso comum e o bom gosto”. Diria que acontece o mesmo em todo o mundo, pois em matéria de planos de urbanismo (ou falta deles!) não somos exceção. Le Corbusier apela aos jovens, mas poderíamos transpor o apelo aos governantes, aos autarcas, aos gestores, urbanistas, arquitetos e construtores contemporâneos: “a partir de agora vai ser precisa muita clarividência!”.
Olhamos à volta e, mesmo sem formação específica na matéria, percebemos facilmente que é precisa uma nova consciência para melhorar as cidades, para as tornar mais acolhedoras, mais sustentáveis, mais acessíveis, mais humanas e, por isso, mais vivíveis. Muita coisa boa tem sido feita por todo o país, é certo, mas também assistimos a verdadeiros crimes contra a natureza. Falo da natureza com duplo sentido, paisagística e humana, uma vez que no campo e nas cidades vivem demasiadas pessoas que se sentem agredidas, hostilizadas e maltratadas pela forma desequilibrada, desregrada, como as coisas são construídas e geridas.
Novos tempos trazem novos ciclos de preocupações. O que era essencial ontem pode não ser decisivo amanhã. Hoje há urgências inaugurais em termos sanitários que exigem mais de quem decide e governa. Arquitetura e urbanismo presidem a todos os nossos gestos. Estão em tudo o que fazemos e vivemos. Em casa, entre as paredes de uma sala que acolhe as nossas coisas, nos edifícios, nos corredores que percorremos, em escadas e elevadores, nas ruas e avenidas que atravessamos diariamente, no perímetro dos bairros que cruzamos, tudo pode ser hostil ou acolhedor, seguro ou perigoso. O espaço urbano também é a nossa casa comum. O urbanismo marca a nossa existência. Bem ou mal planeado influencia o nosso modo de vida.
Desde que acordamos até que adormecemos, nas chamadas ‘walking hours’, em que estamos despertos e nos movemos, seja na cidade, nas vilas ou no campo onde moramos, tudo deve ser pensado para estar ao serviço de quem habita e trabalha. Os espaços públicos devem ser geridos por pessoas competentes e atentas às necessidades humanas, apostadas em melhorar a qualidade de vida dos cidadãos e, ao mesmo tempo, exaltar e preservar a natureza.
A gestão urbana, a direção autárquica é missão que exige vocação. Governar não pode ser uma ambição política, não deve ser uma encenação. Tem que ser um ato de entrega e de amor. Amor, sim. Pelas pessoas e pelos espaços, amor às causas e às coisas. Amor e devoção, competência e dedicação, liberdade, e criatividade aliadas a uma ética irrepreensível para combater os verdadeiros combates. Para lutar contra aquilo que já Le Corbusier classificava como “incapacidade de pensamento”.
Dizia ele, no seu tempo e a propósito do seu país adotivo, que “hoje, a vista de avião passa uma vassourada sobre as nossas reticências, esmaga a nossa pequenez, acusa a nossa imperícia. Sobrevoem as cidades e fixem-se particularmente na obra do século XX: é tudo fragmentário, individual, local e sem coerência”. Infelizmente este olhar aplica-se em todas as latitudes e poderíamos até dizer que Corbu falava de Portugal e não de França.
A incapacidade de pensamento apontada pelo grande urbanista suíço-francês apoderou-se de muitos daqueles a quem incumbe enunciar as regras de construção, mas também de gestão da polis. Le Corbusier falava em reconstrução, pois era disso que se tratava no seu tempo, marcado pela Grande Guerra e consequente ressaca, mas no século XXI continuam a multiplicar-se os espaços sem coerência.
Não podemos manter políticas compartimentadas, disputadas entre clãs políticos, cada um com as suas paixões cegas e ódios egoístas, uns desperdiçados em lutas intestinas outros contra os que pensam de forma diferente e apenas empenhados em desfazer o trabalho dos que os antecederam. Precisamos de gente com visão, gestores lúcidos e capazes, líderes comprometidos com o bem comum, pessoas livres de preconceitos ideológicos e com capacidade de integrar ideias e projetos.
O mundo é um imenso sistema de colaboração e entrega e as autarquias não são exceção. É urgente quebrar barreiras e inaugurar um tempo novo em que é possível fazer equipas coesas, consistentes e apostadas em fazer bem o bem, independentemente da lógica partidária e da agenda política. É imperativo deixarmos de viver separados por desconfianças alimentadas e mantidas por quem lucra com elas. Pode não haver uma justiça eficaz neste país, mas se alguma coisa a pandemia nos veio ensinar é que este é o tempo de fazer novas muitas coisas, cultivando a competência, a transparência e a colaboração. A começar pela gestão autárquica.