Na semana passada, o Presidente da República iluminou os portugueses com um pedaço da sua erudição professoral: “Uma preocupação que os portugueses têm, em qualquer caso, é de terem verões sem acidentes. E sem doenças. Todos nós aspiramos a isso e cada qual fará um esforço para não estar doente, por si mesmo e para não pressionar o cuidado da saúde dos outros. Sendo embora uma evidência, às vezes as evidências têm de ser recordadas e os nossos pais recordavam-nos isso quando éramos jovens, os nossos amigos também, os nossos professores. E, portanto, os responsáveis políticos podem recordar evidências.”
Julgo que é a isto que os politólogos se referem quando falam do famoso “magistério de influência” do Presidente da República. Marcelo influencia o povo para que se porte bem. Qual hábil pastor, orienta as suas ovelhinhas para os melhores pastos. Que são aqueles que ficam longe de serviços de urgência de hospitais públicos.
Marcelo mostra que está cá para zelar pela integridade do SNS. Podia fazê-lo de dois modos. Um era exigir ao Governo que fortaleça o SNS para que aguente a pressão de servir uma população de 10 milhões de utentes, incluindo bastantes idosos e algumas dúzias de grávidas. Marcelo opta pela outra: exigir à população de 10 milhões de utentes que deixe o SNS sossegado. O SNS está lá e está preparado, só não é para gastar. Só quando for mesmo, mesmo, mesmo necessário. No fundo, Marcelo é a avozinha que tem o sofá da sala de estar coberto por um plástico, para não estragar. Aliás, não é só o sofá: a mesa, as cadeiras, a poltrona, a televisão e o carrinho de chá também estão cobertos por plásticos. Que, por sua vez, estão cobertos por uma lona. Plastificada, claro. O dia-a-dia, a avozinha passa-o na garagem, com mobília de campismo e um transístor antigo.
Marcelo quer manter o SNS imaculado. Daí este alerta no início do Verão. É que é, justamente, a época do ano em que as pessoas chegam aos hospitais com os pés cheios de areia, sentam-se nas salas de espera com os fatos de banho ainda molhados e põem-se a vomitar uma gosma amarela que, vai-se a ver mais tarde, é bacalhau à Braz. Para evitar esta badalhoquice, Marcelo cobriu o SNS com um plástico metafórico, para as visitas admirarem. É um SNS Potemkin.
Entretanto – e como António Costa bem avisou – logo surgiram os cépticos a dizerem que é impossível alguém escolher se e quando fica doente. É falso: é perfeitamente possível fazê-lo. Basta ser-se um de dois tipos de pessoas que conseguem determinar, não só o dia em que adoecem, mas também a maleita de que sofrem. O primeiros é o dos estudantes na véspera de um exame para o qual não estudaram. O segundo é o dos hipocondríacos.
Ora, como se sabe, Marcelo Rebelo de Sousa é um afamado hipocondríaco. Lembramo-nos bem de como falava das suas hérnias com o carinho com que um criador de cães hipocondríaco fala das hérnias dos seus cachorros. Da mesma forma que, face a um arremedo de sintoma, Marcelo efectua o diagnóstico e prescreve a terapêutica, é natural que julgue que uma pessoa também pode decidir que está sã como um pêro e não vale a pena maçar o senhor doutor só por causa desta hemorragia chata que não estanca.
Percebo que, para um hipocondríaco, o SNS é a Disneylândia e é normal que Marcelo o queira preservar. Mas não deixa de ser bizarro ver alguém com a mania das doenças a admoestar os portugueses para não adoecerem. É como ter um alcoólico a censurar uma pessoa por comer um bombom de ginja.
Se bem que é preciso reconhecer que a hipocondria de Marcelo não é infalível. Às vezes escapam-lhe problemas de saúde bem óbvios. Por exemplo, desde que António Costa tem maioria absoluta, o poder do Presidente está em coma e Marcelo ainda não se deu conta. É uma evidência, mas as evidências têm de ser recordadas.