As declarações do Presidente da República sobre o filho, no jantar com a imprensa estrangeira, só surpreenderam quem não está a par dos últimos desenvolvimentos nas teorias de parentalidade. Marcelo Rebelo de Sousa limita-se a dar o seu cunho pessoal ao tipo de educação que está na moda. Enquanto a maioria dos progenitores modernos são o que se chama “pais helicóptero”, porque ficam por cima dos filhos a supervisionar tudo o que fazem, Marcelo é um “pai que atira o filho do helicóptero”.

Mas também não é preciso ficarmos tão escandalizados. Não o atirou de muito alto. No fundo, Marcelo não fez mais do que aquela mãe que vai desenterrar álbuns antigos para mostrar fotografias embaraçosas à namorada do filho. “Aqui está ele a dançar o Baby Shark com a fralda cheia de cocó”. A única diferença é que Marcelo Rebelo de Sousa mostrou o cocó que o filho fez já adulto. A uma sala cheia de jornalistas. Que noticiaram o cocó em meios de comunicação de massas. Tirando isso, é a mesma coisa.

Marcelo é um daqueles pais que gostam de fazer os filhos brilhar. No caso do seu filho Nuno, brilhar como um resíduo radioactivo, para que ninguém se aproxime dele. Aposto que já o deserdou. Só não lhe retira o “belo” em Rebelo porque não consegue.

Há pais que seguem religiosamente a extensa bibliografia do pedagogo Brazelton, há outros que preferem a igualmente vasta obra de Benjamin Spock. Marcelo, um conhecido apaixonado por livros, usa os dois. E acertou com calhamaços de ambos em cheio nas fuças do filho.

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Aliás, é provável que a forma excêntrica como Marcelo pratica a leitura tenha influenciado o tratamento que deu ao filho. Com tantos livros que recebe, é natural que o Presidente não os consiga ler a todos com atenção. Limita-se a folheá-los para ficar com uma ideia geral. Deve ter sido isso que aconteceu com a Bíblia. Ao ler o Génesis na diagonal, Marcelo deparou-se com a história do sacrifício de Isaac por Abraão, seu pai. Deve ter pensado: “Olha que interessante! Deus ordena a Abraão que sacrifique o próprio filho. Vou guardar esta ideia”. Só que, se tivesse lido até ao fim, Marcelo descobriria que, no último momento, Deus envia um anjo para impedir que Abraão relate as embaraçosas tropelias do filho a uma sala cheia de jornalistas. Escapou-lhe esta parte.

Com esta performance, Marcelo assegurou-se que, num próximo discurso, iremos ouvi-lo gabar-se de mais uma actividade em que os portugueses são os melhores do mundo: verem-se livres de filhos incómodos. Ultrapassámos os espartanos, que enjeitavam os bebés que não dariam bons soldados. Mas os espartanos faziam-no discretamente, não organizavam um banquete para o efeito. Temos mais noção de espectáculo.

Por ser baptizado em honra de Marcello Caetano e por o seu pai ter sido uma figura proeminente da Ditadura, Marcelo Rebelo de Sousa nunca conseguiu dissociar-se completamente da herança do Estado Novo. Este caso pode ajudá-lo a livrar-se dessa sombra. Pela forma como trata o filho é óbvio que Marcelo não aprecia o lema “Deus, Pátria e Família”.

Mas eu percebo a exasperação de Marcelo. Também me irrito com o meu filho por uma situação parecida. Só não é igual porque o meu gasta-me o nome por estar sempre a chamar-me, enquanto o do Presidente gasta-lhe o nome ao usá-lo para conseguir favores. Só que, para mim, o mais grave nas declarações de Marcelo nem foi o que disse do filho, foi a hipocrisia demonstrada ao longo do jantar. Por um lado, falou em compensar as ex-colónias pelos abusos cometidos ao longo dos séculos; por outro, não se mostra minimamente preocupado com o facto de sobrecarregar o Brasil com a presença de um abusador como o seu filho. Em que é que ficamos, Sr. Presidente?