Esta semana o mundo, que há muito ameaça mudar, transformou-se irremediavelmente. Aquilo que muitos diziam desde os anos 1990, que a Europa não precisava de forças militares porque ninguém queria uma guerra connosco, foi falsificado pela história, de forma mais ou menos previsível, mas não menos brutal por causa disso.

A Rússia é a primeira potência revisionista do século XXI a levar à prática o que a teoria diz que quase sempre acontece: quando a potência que detém o status quo perde força, as potências que se sentem fortalecidas e têm vontade política põem os exército nas ruas para imporem a sua vontade. É assim pelo menos desde a Guerra do Peloponeso.

Daí que estranhe ouvir e ler tantas vezes que Putin é “irracional”. Não é. Muito pelo contrário. O Kremlin obedece a uma racionalidade histórica e ideológica que nos pode escapar no Ocidente, mas é bem clara para o presidente russo. Politicamente, Putin leu as condições no terreno: a transição de poder que decorre no sistema internacional constitui uma oportunidade e, nas cimeiras russo-americanas, terá percebido que Biden não estaria disposto a defender a Ucrânia. Pelo menos não de maneira a dissuadi-lo dos seus intentos. Ideologicamente, a sua racionalidade ficou clara no discurso que proferiu na segunda feira passada: a Ucrânia, na sua ótica, é uma infeliz invenção bolchevique que transformou uma parte integrante da Rússia numa entidade territorial, deixando-a ter identidade. Este erro da história revista – e quantas vezes a história da Rússia já foi alterada por quem está no poder – tem de ser corrigido pelo único homem que tem a ousadia de o fazer, se preciso, contra tudo e contra todos. Ninguém mais que Vladimir Putin que, como Timothy Schneider tão bem descreve, é uma espécie de herói da “nostalgia” do império, “predestinado” a recuperar a glória perdida. Não há irracionalidade nenhuma na invasão da Ucrânia. Há uma racionalidade própria que escapa ao Ocidente, que vê o mundo de uma perspetiva quase oposta.

A racionalidade ocidental, ou melhor, para sermos verdadeiramente honestos, a racionalidade norte-americana foi posta à prova. Perante esta guerra anunciada, a administração Biden viu-se num dilema: usar canais diplomáticos e “sacrificar” a Ucrânia, que em linguagem diplomática significaria dar garantias ao Kremlin de que este país não entraria na NATO e que as influências norte-americanas e europeias seriam arredadas de Kiev, isolando a Ucrânia, “oferecendo-a” a Moscovo; ou usar a única linguagem que poderia travar o expansionismo russo: ameaçar o uso da força. Deslocar meios da Aliança Atlântica para a Ucrânia e afirmar de forma credível que uma incursão de Moscovo seria severamente travada por quem tem capacidade para isso – e não são, com certeza, os ucranianos.

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A administração Biden – autointitulada “líder do mundo livre” ficou a meio caminho. Usou aquilo a que o presidente chama “diplomacia robusta”, denunciando cada passo russo com a intenção de isolar Moscovo diplomaticamente e depois da invasão decretou sanções económicas graves. Não me lembro que punições económicas, sejam de que tipo for, tenham travado uma guerra. Com a vontade política da Rússia de levar a sua revisão até às últimas consequências, não me parece que a posição ocidental tenha a força necessária para inverter seja o que for.

Ora, sei que agora muitos dos leitores acham que eu estou a ser irracional. Travar militarmente uma potência nuclear? É evidentemente arriscado. Mas não sei até que ponto corremos riscos maiores por não o ter feito. A Ucrânia onde, provavelmente, daqui a alguns dias haverá um governo-fantoche controlado por Moscovo, faz fronteira com a Polónia, a Eslováquia, a Hungria e a Roménia. Sem falar do facto de a Rússia fazer fronteira com as três repúblicas bálticas. Os primeiros faziam parte da esfera de influência soviética. Os últimos faziam parte do império. Quem nos garante que o revisionismo em curso termina por aqui? Se a Ucrânia era o tampão que segurava Moscovo noutras fronteiras, sem ele, a Europa é muito mais vulnerável. E se a NATO sofrer algum ataque a tal guerra na Europa, de todos contra todos, torna-se inevitável.

Só mais uma nota: independentemente da prudência chinesa no que respeita a pronunciar-se sobre este assunto, esta invasão da Ucrânia é um presente para Pequim. Senão, vejam: o que se passa na Europa é uma espécie de ensaio no que se refere a Taiwan. Pequim tem a oportunidade de observar Moscovo e o Ocidente, corrigir erros eventuais, e fazer um cálculo mais acertado em relação às suas decisões. Além disso, este conflito de forma direta ou indireta enfraquece quer Washington quer Moscovo. Os Estados Unidos por não terem demonstrado a determinação necessária para travar a Rússia; Moscovo porque qualquer guerra, ainda mais punida com sanções económicas, tem custos elevadíssimos. E, inevitavelmente, a Rússia fica muito mais dependente da China.

O Kremlin tem a sua própria racionalidade: quer recuperar um império que acredita ser seu por direito. Washington também: quer ser líder do mundo livre e travar uma longa batalha de transição de poder contra as autocracias. Se por um lado a NATO se tornou mais unida e coesa, também se tornou mais vulnerável, por falta de comparência do Ocidente. E a Ucrânia paga um preço inimaginável por ter querido exercer o seu direito à nacionalidade e, sobretudo, por ter escolhido uma identidade democrática. Que mal ficámos na fotografia. Que mau precedente para aliados democráticos fora da Europa que têm posto a sua confiança e as suas armas numa aliança com os Estados Unidos.

Quer se queira quer não, as autocracias estão a ganhar o primeiro round. Bem sei que tenho defendido que estamos perante um cenário de guerra de desgaste e ainda muita água vai passar debaixo da ponte. Mas esta semana o Ocidente está mais vulnerável e terá de se reestruturar depressa e bem para que males maiores não lhe ensombrem o futuro.