“Às vezes só me apetece baixar o braços, simplesmente abandonar o barco e desistir Doutor” ou “Só ainda agora começou e já estou farto desta época!”. Quantas vezes ouço estas frases nesta época festiva. Estas e muitas outras. Até cheguei várias vezes a colocar a mim próprio a seguinte questão: “porque raio é que nas épocas festivas é quando chega grande parte dos meus clientes?”, “Porque é que esta altura gera tanto stress?!”.
A verdade é que os cépticos e os niilistas desta época podem já estar a enumerar várias razões, mas na verdade as variáveis ainda são mais densas do que qualquer número que esses sujeitos possam apontar e, mesmo os cépticos e os niilistas, deveriam fazer uma introspecção de forma a perceber se não foram apanhados pelo efeito Lúcifer que de alguma forma consome a perda total de sentido nas coisas. No entanto esse não é o propósito deste pequeno texto. O propósito é fazer uma pequena reflexão acerca do espírito natalício e do consumismo. De que forma o consumismo genuíno pode ser uma boa fórmula para absorver aquilo que de melhor o natal tem para oferecer.
Dessa forma, a junção de natal + capitalismo gera só por si stress. Quando se perde a essência do espírito natalício que deveria ter por base o amor, a reciprocidade, a comunhão, a aceitação da diferença e a confraternização, trocando estes princípios pelo consumismo materialista desenfreado, a coisa não pode dar certa. Na verdade, eu apontei que um dos adjectivos subjacentes ao natal é o amor e a reciprocidade. Dessa forma faz todo o sentido a troca, a partilha, o dom/débito, ou seja, o acto de dar e receber.
Verifiquem como é bela esta última expressão, o acto de dar e receber. Dizer que o natal também é a arte de dar e receber, é por si só complexificar a época. É adicionar uma conjunção copulativa, que por si só realça a adição. O Natal é uma época de adição e de reposição, pois acrescenta algo que nos falta, sendo esse o princípio da reciprocidade. No entanto, esse algo acrescentado, através da reciprocidade, não significa a restituição do valor gasto. No fundo, aceitar a diferença é perceber que a reciprocidade não se paga na mesma moeda.
No natal, as métricas podem divergir na hora da troca e aquele que oferece por dinheiro pode receber por afecto. Contudo entra em pé de desigualdade, porque o afeto não se compra através do dinheiro e nós iremos precisar sempre mais de afecto do que de dinheiro.
Eu lembro-me quando eu e o meu irmão começamos a trabalhar, ainda estávamos na faculdade e éramos trabalhadores estudantes. Sempre fomos uma família muito humilde e nunca ligamos muito às prendas de natal, sabíamos que um bom pão de ló, algumas rabanadas e uma boa aletria caseira feita pela nossa mãe, era tudo o quanto bastava para um natal feliz. Contudo, também somos jovens de carne humana e sabemos que vivemos na voz do consumo.
Nesse ano queríamos matar um desejo conjunto e reunimos dinheiro para comprar uma Ps4 em segunda mão. Compramos dias antes do natal e o nosso maior desejo era jogar. No entanto aguardamos porque sabíamos que o maior prazer da nossa irmã era abrir prendas e no fundo aquela era a maior prenda para os 3. Juntando o útil ao agradável esperamos e, tal como com outros presentes, aguardamos que a nossa pequena irmã os desembrulhasse a todos. Pequenas coisas, tais como chocolates e outras coisas que nos foram oferecidos por conhecidos, familiares e amigos do meu pai. Todavia, qual seria o maior espanto quando nos apercebemos que o maior presente estava aí mesmo… Enquanto olhávamos, mas mais do que isso, observávamos a nossa irmã. Os seus olhos brilhavam simplesmente por ser criança e porque naquele natal teria um desafio maior para desembrulhar a última peça. A nossa felicidade resumiu-se em 1.40m de pura doçura com os olhos a brilhar.
São nestes pequenos momentos que o natal nos ensina a ir além do consumismo desenfreado catapultado pelo amor platónico do capitalismo. Do lado a produção, ou sejam o lucro ainda não alcançado, do lado do consumo, ou seja, os valores materiais que ainda faltam ser adquiridos. Nesse natal nós provamos um pouco dos prazeres do capitalismo. Porém eu não sou hipócrita como uns tantos que afirmam que o Natal não deve isso. Não deve ser só isso, mas também é isso! Na verdade, esse verão de trabalho com o meu irmão foi bastante sofrido e achámos ambos que merecíamos um miminho sobre algo que valorizávamos na altura.
No entanto, olhando em retrospectiva, o que marca genuinamente essa altura festiva e outras tantas é a família. A família unida ou a relação próxima com aqueles que mais amamos. Infelizmente o que mais recebo em consultório são famílias destroçadas. Destroçadas pelo consumismo existencial, aquele que nos consome a alma e não nos permite ver mais além. Aquele que, derivado do trabalho ressentido, frustração, traumas e perda de sentido nas nossas ações, nos arrasta até um vácuo onde qualquer coisa que compremos não preenche o buraco negro que nos absorve por dentro.
O paradoxal disto tudo é que na verdade, nós ampliamos a existência e acendemos uma luz no centro desse buraco negro, através do consumo! Um consumo genuíno, verdadeiro e mais transcendente. Consumindo cultura, consumindo valores, consumindo afetos, consumindo a beleza das coisas através de uma atenção devidamente sustentada no tempo e no espaço. No fundo, tudo aquilo que o dinheiro não alcança mais, ou pelo menos em parte.
Neste natal só espero que pare um momento, respire fundo e desfrute daquilo que já possui na vida e que não pode ser adicionado por valores materialistas externos. Consuma o que tem e adicione algo mais. Adicione a experiência, adicione o conhecimento, adicione afetos e não se esqueça de acima de tudo de adicionar o amor…
Um bom natal.