Durante os últimos cinco dias, sempre que me aconteceu assistir pelas televisões aos directos e às reportagens do incêndio em Pedrógão Grande e nos concelhos vizinhos, senti compaixão por aquelas pessoas, a maioria idosas, ameaçadas e desalojadas pelo fogo. Mas senti também outra coisa: vergonha. Não senti vergonha por haver incêndios em Portugal ou por o país se ter desenvolvido como se desenvolveu. Senti vergonha porque, sabendo toda a gente que há incêndios e o país é como é, as autoridades não terem conseguido, devido à sua aparente imprevidência e descoordenação, poupar as populações à morte e à aflição. Para que serve o Estado, se não é capaz de impedir mais de 40 pessoas de morrer numa estrada aberta ao trânsito no meio de um grande incêndio?
Tal como toda a gente, estou farto dos sociólogos amadores e dos silvicultores de bancada que agora zumbem por televisões e jornais a gritar por mais um inquérito e por mais uma lei. Sabem o que gostaria de ver? O que se viu ontem no parlamento britânico: a primeira-ministra Theresa May reconheceu que o Estado tinha falhado no caso do incêndio de Londres da semana passada e pediu formalmente desculpa, mesmo antes dos inquéritos estarem concluídos. Sim, eu gostaria de ver alguém, aqui, pedir desculpa. Não me esqueço que um fogo é difícil de impedir e de controlar. Mas não estou a falar disso. Estou a falar do que foi feito para proteger e informar as populações. Aquilo que já sabemos sugere uma falha grave das autoridades na prevenção e no controle do incêndio em Pedrógão Grande. Há demasiadas testemunhas de pessoas que se viram desamparadas, e que tiveram de se salvar pelos seus próprios meios. Há dúvidas legítimas sobre as condições da morte de mais de 40 pessoas na estrada nacional 236-1: a simples hipótese, ontem noticiada, de terem sido as próprias autoridades a encaminhar as pessoas para o crematório é aterradora.
Durante a crise, o Estado nem sequer foi capaz de nos dar uma ideia do que se estava a passar. Disseram-nos que estava tudo a correr bem, e depois que afinal não tinha sido assim. Vimos pessoas sem informações, ou confundidas por causa de informações contraditórias. Como vão essas pessoas voltar a confiar num Estado que as abandonou no pior momento, que nem sequer as soube manter informadas, quando a diferença entre a vida e a morte dependia precisamente da informação? Uma democracia é feita, em primeiro lugar, de confiança: confiança dos eleitores nos eleitos, confiança dos eleitos nos eleitores. Não basta partilhar afectos, dar abraços, exibir emoção.
Pedir desculpa em Portugal é só para os culpados, e portanto é visto como admitir culpa. Por isso, os nossos sábios políticos nunca pedem desculpa. Mas pedir desculpa, como Theresa May fez, não é reconhecer culpas: é reconhecer responsabilidades. O fogo não foi posto pelo presidente da república nem pelo primeiro-ministro. Mas foi sob a presidência de um e o governo de outro que a tragédia aconteceu. Quem estava à frente do Estado, tem responsabilidade, mesmo quando não tem culpa. Pedir desculpa às vítimas, às suas famílias e às suas comunidades em nome do Estado seria assumir essa responsabilidade, seria dizer: estamos aqui para vos proteger, não conseguimos, vamos perceber porquê, mas desde já pedimos-vos desculpa.
O Estado fracassou em Portugal nas suas funções mais básicas. Agora, não podemos passar da tragédia à farsa. Todos sabemos que os inquéritos, como todos os inquéritos, não vão apurar nada. Todos sabemos que novas leis feitas à pressa, como todas as leis apressadas, não vão mudar nada. O reconhecimento da responsabilidade constituiria talvez, dados os precedentes, a única mudança possível: pela primeira vez na sua história, o Estado em Portugal reconheceria não ter estado à altura da confiança que os cidadãos tinham depositado nele. Para isso, claro, seria preciso coragem. Haverá essa coragem? Sr. Presidente? Sr. Primeiro-Ministro? Vão ter coragem de pedir desculpa, em nome do Estado, pelas vidas perdidas, pelas famílias destruídas, pelas comunidades atormentadas enquanto os senhores ocupavam os primeiros lugares do Estado?