Países como a Alemanha e a França começam a discutir as regras orçamentais e economistas desafiam o BCE a perdoar dívida. Sim, todo o projecto europeu é construído, e bem, em cima de regras. Mas no debate que opõe os defensores das regras e os da discricionariedade nas políticas económicas há um aspecto fundamental: as regras só garantem prosperidade em tempos normais. E nós vivemos em tempos excepcionais, de incerteza extrema, que aconselham liberdade de acção. As regras podem regressar depois quando reconquistarmos a nossa vida pré-pandemia em crescimento económico.
A recuperação europeia, tal como a portuguesa, não será em V. Na melhor das hipóteses será em W, com a quebra registada no último trimestre de 2020 a agravar-se nos primeiros três meses deste ano, já que boa parte dos países europeus continuam em confinamento mais ou menos estrito. A presidente do BCE, Christine Lagarde, na entrevista dada durante o fim de semana, considera que estamos apenas perante um atraso na recuperação e não face a uma ameaça, indiciando que a instituição poderá manter a sua previsão de um crescimento de 3,9% na Zona Euro, este ano, quando fizer a revisão agendada para o próximo mês. Embora tudo dependa do ritmo de vacinação que se vai verificar.
Uma das recomendações de Lagarde é que se retirem os apoios à economia gradualmente, o que é obviamente sensato. As empresas e as famílias têm estado ligadas à máquina dos apoios públicos e sua retirada precoce ou súbita vai gerar inevitavelmente um novo mergulho da economia. Diga-se, aliás, que mesmo que os apoios sejam retirados lentamente, não é certo que não se assista a uma quebra da actividade económica, com a declaração de falências e desemprego, assim que voltarmos à normalidade. Do que estamos a falar, quando se defende que os apoios sejam retirados gradualmente, é de moderar a dimensão do novo mergulho.
Neste momento, apenas a quebra do PIB se aproxima do que se está a passar na economia. As estatísticas do desemprego não nos dão qualquer retrato da destruição de postos de trabalho, quer pela definição estatística de desempregado – é preciso, por exemplo, ter procurado activamente emprego – quer porque muitas empresas estão artificialmente vivas sem a certeza de conseguirem sobreviver.
A recomendação da presidente do BCE entra contudo em conflito directo com as regras europeias, e até nacionais em países como a Alemanha, que limitam a margem de actuação dos governos. Estamos a falar de regras para as finanças públicas mas também das regras europeias para as ajudas de Estado. Mas podemos igualmente pensar na regra que proíbe o financiamento monetário da dívida – que impede que o BCE limpe a dívida dos Estados que tem no seu balanço e que Lagarde recusa aceitar por violar os tratados.
O Pacto de Estabilidade, com limites para o défice público e para a dívida, embora suspenso também para 2021 e possa ser estendido para 2022, mantém-se como uma ameaça para países como Portugal. Uma das razões para a reduzida generosidade dos apoios do Governo português pode estar no receio de, no próximo ano, ter de voltar à disciplina do Pacto – o que levou até ao absurdo de se ter gasto menos em 2020 do que o previsto quando se fez o Orçamento em 2019, sem se saber que havia pandemia. Podemos considerar que o Governo foi excessivo na sua “forretice”, mas temos de admitir que foi prudente ao olhar para o que pode ser 2022 – um cenário de terror, agora financeiro, e semelhante ao de 2011 se, de repente, regressassem as regras das finanças públicas. Na Alemanha as regras são ainda mais estritas de equilíbrio orçamental e limites ao endividamento.
O debate sobre a necessidade de flexibilizar essas regras, nestes tempos excepcionais, já começou. Em finais de Janeiro, o ministro francês das Finanças, Bruno Le Maire, defendeu que as regras do Pacto de Estabilidade, embora sejam importantes para os 19 do euro, “devem ser reavaliadas para terem em conta a realidade – uma realidade de elevados níveis de dívida, as mais baixas taxas de juro da nossa história e as mais elevadas necessidades de investimento da história”.
Praticamente na mesma altura o ex-ministro alemão das Finanças Wolfgang Schäuble disse, numa entrevista ao Financial Times, simpatizar com os que defendem que as regras do Pacto de Estabilidade devem ser revistas antes de voltarem a ser reintroduzidas. “Depois da pandemia muitas coisas serão completamente diferentes do que eram”, afirmou. E não foi o único. O chefe de gabinete de Angela Merkel já se atreveu a defender que fossem suspensas as regras constitucionais alemãs que limitam a dívida e o défice.
A linha de defesa da alteração das regras orçamentais vem também do FMI. Nesta entrevista ao Financial Times, Vítor Gaspar o ex-ministro das Finanças em Portugal e actual responsável pelo departamento de finanças públicas do Fundo defende que as “circunstâncias mudaram de uma forma que justificam que se repensem as regras orçamentais”.
Está assim aberta a possibilidade de reavaliação das regras do Pacto de Estabilidade e o debate na Alemanha, como se defende aqui também no Financial Times, é importante para perceber em que sentido iremos.
Do ponto de vista dos interesses portugueses, seria importante que essas novas regras fossem conhecidas rapidamente para que tenhamos a mesma margem de manobra na política orçamental, sem medo de, daqui a um ano ou dois, sermos apanhados pela disciplina dos mercados financeiros, por sermos classificados como orçamentalmente indisciplinados.
Uma outra regra, que está a limitar a margem de actuação dos governos, é a das ajudas de Estado. A política europeia de concorrência, bem o sabemos pela experiência que tivemos nos anos da ajuda financeira com efeitos no sector bancário, é uma das mais poderosas e tecnocratas da União Europeia. Mas também nestes tempos excepcionais, as excepções criadas até agora parecem insuficientes para que se concretizem as recomendações de retirada gradual dos apoios e até do seu reforço.
Num artigo publicado no Financial Times, a Dinamarca, a República Checa e a Áustria pedem que a União Europeia eleve os limites máximos para subsídios (800 mil euros) e apoios a custos fixos (3 milhões de euros). Um apelo feito para ter em conta os efeitos da terceira vaga da pandemia.
Finalmente, não menos importante, a regra que proíbe o financiamento monetário da dívida e que impede o BCE de anular os empréstimos aos Estados que tem no seu balanço. Na última semana, um grupo de mais de cem economistas de 13 países europeus assinam uma carta aberta – de Portugal é assinada por Francisco Louçã – apelando a que o BCE anule a dívida que detém dos Estados-membros no seu balanço, para se financiar um plano de investimento europeu.
Claro que o BCE já veio dizer que o financiamento da dívida é proibido pelos tratados. Lagarde considera que afecta a credibilidade do euro. Mas este será também um tema que se manterá na agenda e ninguém se surpreederá se o que se diz hoje como impossível acabe por acontecer. É igualmente interessante verificar que a presidente do BCE, ao pedir aos países gradualismo na eliminação das medidas de apoio, está implicitamente a dizer-lhes para não respeitarem as regras orçamentais, para se endividarem. O que põe em causa o futuro das regras europeias para as finanças públicas.
Toda a arquitectura europeia está pensada e construída sobre regras que têm como objectivo fundamental impedir que existam almoços grátis. Obviamente que as regras, mesmo sem ser na complexa construção europeia, são importantes em política económica.
Na política monetária, a par da independência dos bancos centrais, as regras permitiram acabar com o flagelo da inflação de finais do século XX. Na política orçamental, além de impedirem (ou tentarem) os almoços grátis no clube europeu, ao nível nacional combatem o enviesamento para gerar défices públicos que os governos têm, por via da sua perspectiva de gestão de curto prazo.
Numa conjuntura normal, uma política económica e financeira submetida a regras tende a gerar melhores resultados em matéria de crescimento. Mas quando vivemos num ambiente de incerteza total, como se estivéssemos no meio de uma tempestade com ventos erráticos, a discricionariedade, o poder de olhar para o problema e tomar a melhor decisão da altura para o resolver sem regras, acaba por ser a melhor solução.
Parece óbvio que quer a eliminação da dívida pública quer a flexibilização das regras orçamentais seriam um contributo importante para uma recuperação mais rápida e segura da economia europeia. O ideal seria que se tomassem decisões definindo desde já as novas regras. Tal seria especialmente útil para países como Portugal, que não se pode dar ao luxo de ter a política que devia, com medo do que possam ser as regras a seguir e, especialmente, sem saber se já estará em condições de as cumprir no pós-pandemia.
O que se defende não é o fim das regras nas políticas públicas, mas sim a sua significativa flexibilização até que os países saiam seguramente da pandemia e dos seus efeitos. As regras regressariam a seguir, quando a incerteza desaparecesse, mas, entretanto, garantia-se a recuperação e a prosperidade da Zona Euro. Sem pragmatismo e total liberdade de acção, a União Europeia corre o sério risco de ter uns anos largos de crescimento medíocre com efeitos não apenas sociais mas também políticos. No limite, pode colocar em perigo o próprio projecto europeu.