Há um traço comum entre a pobreza do debate na corrida à liderança do PSD, a ousadia dos inquisidores de organismos como Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (que agora arremeteu contra a liberdade de expressão de José António Saraiva) ou de campanhas como as do Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável (e as suas ridículas listas de proibições de alimentos nos bares dos hospitais), e a desfaçatez no disparate de algumas propostas legislativas, como as relativas ao alojamento local ou à legislação laboral. E esse traço comum é o medo de ser o que se é. Ou, para ser mais exacto, de defender abertamente aquilo em que se acredita quando isso vai contra a corrente dominante.
Tomemos para começar os programas apresentados pelos dois candidatos à liderança do PSD. Há lá algumas ideias interessantes, há lá propostas de caminhos diferentes daqueles que a geringonça tem seguido. Mais no programa de Santana, que é claramente mais ousado e mais concreto, do que no de Rio, mais bem comportadinho e, em muitas frentes, ora confuso sobre os seus desígnios, ora obcecado com fantasmas inexistentes. Mas a verdade é que nenhum dos candidatos parece sequer querer afirmar essas suas diferenças faça ao modelo de Costa. Leiam as entrevistas. Vejam os debates. Esqueçam a parte das tricas e tentem encontrar um discurso que, ao menos, reflita o que escreveram nos seus programas. Não encontram. Foi patético, por exemplo, vê-los no debate da RTP a falar de crescimento económico de forma tão etérea, tão etérea, que até me recordou os discursos sobre a “prioridade ao crescimento” dos debates entre Seguro e Costa. Uma lástima.
No entanto há muita gente na sociedade portuguesa que sabe o que quer. Que percebeu que os últimos anos não foram apenas de austeridade – foram também (mesmo que de forma muito insuficiente e tímida) anos de reformas liberalizadoras.
Vejam essas duas áreas onde a esquerda e a extrema-esquerda está agora a atacar, o alojamento local e as leis laborais.
Eu não sei o que pensam Rui Rio e Santana Lopes sobre estes dois temas, e até duvido que tenham pensado o suficiente sobre eles. Porque o que se esperaria de líderes de um partido como o PSD, assim como de todos quantos no parlamento e nos órgãos de informação se colocam do lado dos que acreditam mais na sociedade civil do que no poder redentor do Estado, é que dissessem abertamente algumas coisas. Que dissessem, por exemplo, que o milagre do crescimento dos últimos anos se deve muito a leis e reformas que ninguém parece ter hoje coragem para defender.
Não haveria nunca a transformação dos centros das cidades a que estamos a assistir sem a tão vituperada liberalização da lei das rendas. Não haveria o dinamismo que há no sector do turismo sem toda a descomplicação legislativa e regulamentar que foi a marca de água da passagem de Adolfo Mesquita Nunes pelo sector.
Mais: o dinamismo do turismo só foi possível porque o Estado deu espaço às pessoas, à sua iniciativa, à sua capacidade de inventarem coisas novas. É um dinamismo que pouco ou nada deve a políticas baseadas em subsídios ou em programas públicos dirigistas, antes na sua ausência. Não foi nenhum ministro que se lembrou dos tuk-tuk nem nenhum secretário de Estado que desenhou em Lisboa alguns dos melhores hostels da Europa.
É assim tão difícil pegar numa história de sucesso como esta e dizer que é assim que vemos Portugal do futuro, como um país aberto, plural, às vezes caótico, mas sempre mais dinâmico? É assim tão difícil defender que mais regulamentos são mais complicações, que mais Estado é mais burocracia e menos crescimento, que no fundo há, nas propostas de lei entregues no parlamento, um ódio ao sucesso e a toda a riqueza que seja criada pelas pessoas e não redistribuída pelo Estado?
Não basta ter o discurso defensivo que as leis que aí podem vir sobre alojamento local e mercado do trabalho se arriscam a destruir muita riqueza – é preciso dizer que se acredita que elas são mesmo más e que por trás delas estão muitas das ideias que fizeram e fazem o nosso atraso.
E não, não estou a exagerar. Quando o Bloco, o PCP e uma parte do PS (hoje já quase todo o PS) envereda por estes caminhos fá-lo em nome de uma paixão igualitária que, sendo limitadora da liberdade, é castradora da iniciativa dos cidadãos, para mais uma paixão que, em Portugal, desgraçadamente explora a secular propensão para a inveja.
Há uma história cubana que ajuda a explicar a radical diferença de perspectiva que se pode ter quando se pensa no que deve ser a sociedade. É a história dos seus muito particulares restaurantes conhecidos por “paladares”. Funcionam em casas particulares e só foram autorizados naquela economia antes totalmente estatizada quando a crise pós-queda da União Soviética quase levou o castrismo ao colapso. Foi aquele pequeno mecanismo de mercado que o regime autorizou para que o país não morresse de fome, mas a liberdade dos “paladares” tinha um limite: não podiam ter senão uma dúzia e meia de lugares à mesa, mesmo quando as casas ou os jardins permitiam uma maior lotação. Motivo? O regime, em nome da igualdade, não queria que ninguém enriquecesse.
Pessoalmente considero este mecanismo grotesco e não tenho dúvidas que nunca Cuba se desenvolverá sem romper com tal atavismo ideológico. Mas devo dizer que não é difícil encontrar em Portugal quem aplauda esta ideia. Antes pobres mas mais iguaizinhos, do que um pouco mais ricos e com mais desigualdades.
Algumas das normas previstas nas propostas de lei do alojamento local viveriam bem com esta mentalidade “cubana”, mas infelizmente também encaixam como uma luva em muitos preconceitos portugueses. Tal como encaixam bem parte das propostas de reversão das reformas do mercado laboral avançadas pelo Bloco. Por exemplo: os nossos radicais de esquerda querem que desapareça a figura do despedimento por inadaptação, como se todos fossem capazes de se adaptar a novas funções, sobretudo quando não têm um estímulo forte (manterem o emprego) para o fazerem. Tal como pretende que, nos processos de extinção do posto de trabalho, os processos de avaliação de desempenho das empresas não sejam considerados, por serem “subjectivos”. Pensa-se assim, e propõe-se legislação em conformidade, porque não se acredita no mérito uma vez que, no fundo, não se considera que possa haver falta de mérito. Ou seja, nunca ninguém tem culpa de ser “menos bom”, ou “menos bem adaptado”, do que os outros, só por maldade ou “falta de coração” se pode pensar isso (há mesmo por aí um livrinho que glosa esta ideia, significativamente intitulado Corações de Pedra).
Claro que quando não se é capaz de defender abertamente que a beleza das sociedades humanas é não sermos todos iguais não se compreende que isso não pode funcionar apenas para diferenças de sexo, etnia ou religião – também tem de funcionar para as diferenças de talento e vocação, para as diferenças de gosto e, claro, para as preferências culturais e políticas. Ora é esta última parte que os novos inquisidores, sejam eles da linguagem, do comportamento ou daquilo que comemos.
Aqui como noutros países o peso desses novos inquisidores chama-se politicamente correcto e é a norma que os bem-pensantes querem impor a todos os demais. É a norma que não só limita a liberdade de expressão como, em muitos casos, trata de banir formas diferentes de pensar e agir, formas essas tão ou mais legítimas do que as que se reclamam do suposto vanguardismo moral.
Também aqui é preciso não ter medo de afrontar as brigadas do pensamento formatado, mesmo aquelas que ameaçam com tribunais (caso da tristemente célebre Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género).
Numa palavra: é preciso não ter medo de ser o que se é, de dizer o que se pensa, de afrontar os consensos moles que não nos levam a lado nenhum. Mais: se os candidatos à liderança do PSD estão tão convencidos que vão perder as próximas eleições como parecem estar pelo que vão dizendo, então ainda menos razões têm para recearem dizer aquilo que hoje não é popular, remando contra a corrente.
Infelizmente, pelo que têm mostrado, não creio que eles próprios tenham convicções que lhes permitam ir ao encontro de todos quantos desejam ver alguém que não diga apenas futilidades sobre o pântano político, antes perca o medo de ser quem é. E ser de facto diferente, orgulhosamente diferente, da esquerda omnipresente.
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