0O discurso do Estado da União está longe de se resumir a uma comunicação de âmbito interno. As palavras presidenciais ecoam por todo o Mundo. A condição de superpotência a isso obriga. Se os Estados Unidos consideram que tudo o que se passa no planeta lhes diz respeito, também os outros países escutam com atenção as leituras ou análises feitas na Terra do Tio Sam. Este ano, o discurso era aguardado com uma expectativa reforçada, uma vez que seria proferido nas vésperas da decisão sobre o impeachment de Trump e na antecâmara da próxima eleição presidencial.
A forma como Trump preparou o cenário deixou claro que conhece bem o povo que lhe calhou governar. Sabe que os estadunidenses fazem do Super Bowl e dos Globos de Ouro os acontecimentos preferidos. Por isso, montou o palco como se de um show televisivo se tratasse. O Estado-espetáculo no seu melhor.
Assim, jogou com os sentimentos quando encenou o regresso a casa e à família – valores fundamentais da sociedade norte-americana – de um sargento vindo do Afeganistão e atribuiu a Rush Limbaugh, um comentador político gravemente doente, a medalha da liberdade. Além disso, colocou na galeria uma criança prematura como bandeira da luta contra o aborto e acenou com a terra de oportunidades quando atribuiu a outra jovem presente nas galerias uma bolsa de estudo para frequentar a universidade que quiser.
Uma forma de mostrar que o sonho – tal como a mundividência – americano voltou a ser possível.
Na sua forma populista de analisar os problemas, mostrou como um Presidente empresário vê as relações comerciais a nível mundial quando considerou um triunfo as tarifas impostas à China, omitindo qualquer referência ao custo que os cidadãos norte-americanos terão de suportar. Além disso, soube vender a sua forma de não apostar num sistema nacional de saúde afirmando que 180 milhões de cidadãos estavam satisfeitos com os seguros de saúde e nada dizendo sobre o impacto económico dos respetivos prémios nos orçamentos familiares. Mais um esquecimento muito bem lembrado.
Com a conclusão do muro na fronteira mexicana como horizonte, voltou a acenar com o fantasma da criminalidade ligada à imigração e responsabilizou os políticos que desafiam a sua forma de lidar com o fenómeno. Acusou-os de estarem a criar santuários à boa maneira terrorista. Ameaça jihadista que, aliás, não se esqueceu de documentar socorrendo-se da presença dos pais de uma norte-americana morta na Síria após ter sido escravizada pelo Estado Islâmico. Nada como a presença de familiares diretos para justificar o investimento de 2,2 biliões de dólares nas forças armadas.
Como empresário, Trump sabe que os números, apesar da sua objetividade, podem ser usados para fazer passar junto do público interpretações marcadamente subjetivas. Por isso não se esqueceu de mencionar os sete milhões de novos empregos e a taxa de desemprego mais baixa dos últimos cinquenta anos, bem como o aumento do emprego jovem, obviamente esquecendo-se de dar quaisquer informações suscetíveis de avalizarem a qualidade e sustentabilidades dos postos de trabalho. O importante era consolidar o anterior slogan, embora com uma pequena alteração e dar como provado que The Great American Comeback era uma realidade.
Muito mais haveria para dizer sobre o show presidencial. Como a lista de personalidades internacionais que aceitaram sentar-se nas galerias, especialmente Juan Guaidó e Nigel Farage. Um sinal da forma como os EUA irão tratar a questão venezuelana e as relações com o Reino Unido. No entanto, a prosa já vai longa. Por isso, tempo apenas para dizer que o comportamento da Presidente da Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi, também se inseriu no âmbito da política-espetáculo.
Assim, como retaliação à falta de civismo de Trump, que se recusou a cumprimentá-la e a deixou de mão estendida, Nancy Pelosi decidiu rasgar em direto o discurso presidencial. Uma estranha forma de ambos colocarem em prática o tradicional sistema de check and balances.
Neste ambiente de política-espetáculo, o discurso do Estado da Nação deu como findo o processo de impeachment e garantiu que o show dispõe de público para uma nova temporada. Mais uma prova de que a imprevisibilidade de Trump é muito trabalhada.