A invasão da Ucrânia pela Rússia em 24 de fevereiro de 2022 inaugurou uma nova era. Nesse dia, o processo de aproximação da Rússia à Europa ocidental, iniciado com a Queda do Muro de Berlim em 1989, foi interrompido abruptamente. A Rússia voltou a comportar-se como um império, procurando alargar as suas fronteiras através da submissão dos países vizinhos.
A libertação da Alemanha de Leste, da Polónia, dos países Bálticos, da Chéquia, da Eslováquia, da Hungria, da Roménia e da Bulgária do jugo do exército vermelho permitiu a estes países escolherem a democracia e as economias de mercado como modelo de desenvolvimento. Escolheram também a União Europeia como espaço privilegiado de integração económica. Para se protegerem da ameaça secular do império russo, aqueles países procuraram o escudo protetor da NATO. A libertação do domínio soviético e do modelo de economia comunista resultou em elevadas taxas de crescimento económico e numa rápida convergência do nível de vida daqueles países para a média da UE.
A Rússia seguiu um caminho diferente, com resultados económicos e sociais muito menos positivos. Ao regime comunista de economia planificada sucedeu um regime totalitário e cleptocrático, baseado no extrativismo da enorme riqueza em recursos energéticos e minerais. A divisão da colossal riqueza do maior país do mundo por umas escassas dezenas de indivíduos nunca poderia resultar numa verdadeira democracia. Os detentores do poder económico controlaram o poder político para protegerem as suas fortunas, que não pararam de crescer nas últimas duas décadas. Foi nesse contexto que Vladimir Putin chegou à presidência de um dos países mais poderosos do planeta. Putin foi colocado à frente dos destinos da Rússia por Boris Ieltsin, um líder que se encontrava em avançado estado de degenerescência, para gerir uma cleptocracia. Para Putin, e para os cleptocratas que o rodeiam, a Rússia pertence-lhes. Os direitos dos cidadãos russos não existem. Os russos são meros instrumentos numa estratégia de preservação do poder. Não é por isso difícil acreditar que Putin persistirá nesta agressão à Ucrânia qualquer que seja o custo em vidas humanas.
A Alemanha e vários países da UE tornaram-se muito dependentes do fornecimento energético da Rússia. A Alemanha e a UE esperavam que a intensificação das relações comerciais com a Rússia, e a consequente interdependência entre aqueles dois grandes espaços económicos, conduzisse a uma progressiva liberalização da Rússia. Na verdade, iludiram-se com o fornecimento barato de gás e petróleo. Também por essa razão a Alemanha e a UE foram complacentes com a ocupação da Crimeia e as ameaças da Rússia desde 2014.
A relação entre a Rússia e a Europa Ocidental, em particular com a Alemanha, foi sempre de elevada tensão, com várias guerras entre as duas grandes potências europeias e muitas variações nas fronteiras. Por exemplo, Konigsberg, a terra do filósofo Immanuel Kant, autor de A Paz Perpétua, é hoje o enclave russo de Kaliningrado, situado entre a Polónia e a Lituânia. Durante a Guerra Fria, a paz foi garantida à custa da submissão dos países da Europa do Leste ao domínio Soviético, que aí estacionou exércitos permanentes. O regresso da guerra às fronteiras da Rússia com a Europa ocidental é algo que a geografia fazia prever – ver, por exemplo, A Vingança da Geografia de Robert Kaplan. Mas a história não é determinada apenas pela geografia. As decisões dos povos e dos seus líderes podem vencer a geografia.
Perante a agressão russa, a Alemanha reagiu imediatamente. Olaf Scholz anunciou a entrada numa nova era – zeitenwende – em que a Rússia se tornou uma ameaça e em que a Alemanha assumirá as suas responsabilidades na defesa da Europa e no apoio à Ucrânia. O chanceler alemão anunciou um investimento de 100 biliões de dólares no equipamento das forças armadas e um novo posicionamento estratégico em que a parceria transatlântica e a NATO são centrais. A NATO saiu também reforçada com os pedidos de adesão da Suécia e da Finlândia, dois países que permaneceram neutrais durante décadas. Os Estados Unidos têm sido decisivos no fornecimento de material militar e na mobilização da comunidade internacional.
Em junho de 2022, o Conselho Europeu atribuiu à Ucrânia e à Moldávia o estatuto de países candidatos à UE. Ainda que com imperfeições, a UE continua a ser um espaço de liberdade e democracia, a que as nações europeias desejam aderir livremente. Uma estratégia de construção de uma comunidade internacional que a Rússia imperial não consegue perceber. O alargamento do seu espaço de influência foi sempre alcançado pela força e submissão dos países vizinhos.
Putin quis mostrar que a Ucrânia não existia e contava com a passividade do Ocidente, que ele, pasme-se, líder de uma cleptocracia, toma por uma civilização decadente. O povo ucraniano, liderado por Vlodomir Zelenski, mostrou que a Ucrânia existe e que não aceita ser um estado vassalo da Rússia. Nunca é demais lembrar a resposta inspiradora e mobilizadora do presidente Zelenski quando o presidente americano ofereceu ajuda para o retirar do país: ‘não preciso de boleia, preciso de munições’. A liberdade e o desejo de independência em relação ao império russo – já demonstradas nas heroicas manifestações de 2014 na Praça Maidan – tornaram-se o elemento-chave da identidade da nação ucraniana, sobrepondo-se às ligações históricas e à geografia. A geografia, por muito influente que seja, não vence sempre. Os heróis são os que vencem o destino.