É terrível sermos acusados de uma coisa que não cometemos. É quase tão terrível sermos os únicos acusados de uma coisa que muitos cometem. Sabem a sensação de injustiça quando, numa rua repleta de carros acotovelados em cima do passeio, só o nosso tem o papel da multa no pára-brisas? Deve ser o que sentiu o sr. Filipe Santos Costa ao ver-lhe retirada a carteira de jornalista, pela Comissão responsável, devido a ligações profissionais ao Partido Socialista.

Pelos vistos, o infeliz sr. Filipe, que não conheço, comete há meses um “podcast” para o “site” do PS, onde entrevista figuras do PS e é pago pelo PS. Ouvi dez minutos do programa de estreia, em que surpreendentemente o convidado foi António Costa, e achei piada: chamar àquilo prestação de serviços é um eufemismo. Trata-se, prática e involuntariamente, de uma rábula cómica, na qual o entrevistador finge uma isenção que não tem e o entrevistado finge uma seriedade que não se justifica. É o humor velhinho do “ainda bem que me faz essa pergunta”, envelhecido para o “ainda bem que me fez essas perguntas todas”. Propaganda pura, mofo puro.

Por mais difícil que esteja a vida, é triste ver um jornalista descer a semelhantes figuras. O que me parece inadmissível é ser apenas o sr. Filipe a pagar por elas. Numa análise rápida, conclui-se que cerca de 92,45% da nossa classe jornalística se baixa perante o PS e os aliados do PS com zelo idêntico ao do sr. Filipe. E numa análise demorada conclui-se o mesmo. É, salvo seja, assistir aos “telejornais”, ou espreitar quatro quintos da imprensa em papel, ou ouvir a TSF. Não sei se a vassalagem dos jornalistas em causa é recompensada directamente e mediante contrato, como no caso do sr. Filipe, ou se escorre indirectamente através da “publicidade institucional” que o governo plantou nas redacções, ou se é gratuita e dependente da boa vontade dos próprios.

Sei que a vassalagem é inegável e generalizada. Em que cantinho da civilização escapariam sem escrutínio os brutais atropelos do PS e das suas metástases à lei, à honestidade, à liberdade, ao bom senso e à coerência? Para referir um exemplo recentíssimo, veja-se o pacto açoriano com o Chega, que valeu ao dr. Rio acusações de “fascismo”, levou meio mundo a anunciar o regresso do Terceiro Reich e, pela primeira vez em milénios (leia-se desde que o PSD deixou de mandar lá) , convenceu o “Público” a denunciar a pobreza do arquipélago. A abordagem ao dr. Ventura, que o dr. Costa precisava seduzir por causa do Novo Banco, mereceu, se mereceu, um ou dois rodapés noticiosos – e nenhuma coluna indignada.

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Não é um acaso: é uma linha de acção. A mesma linha que acata, reproduz e legitima o desnorte face à Covid, as negociatas, as mentiras, a promiscuidade, a incompetência, a dívida crescente, a miséria iminente. E os privilégios. E a prepotência. Que espécie de “comunicação social” (sic) guardaria um pingo de respeito pela senhora da DGS? E pela vasta maioria dos ministros e secretários de Estado? E pelo dr. Costa? A nossa “comunicação social”, que de tanto se curvar a esta pavorosa mediocridade já terá arranjado umas hérnias valentes. O que não há maneira de arranjar é vergonha na cara.

Há meia dúzia de anos, não tropeçava uma criança na escola sem que os noticiários, com honras de abertura, culpassem Pedro Passos Coelho. Hoje, aconteça o que acontecer, ecoa uma reverência profunda aos senhores que mandam. Literalmente, a que se deve a reverência? Apesar de tudo, compreendo melhor um “jornalista” que ronrona ao PS a troco de uns trocos do que aqueles que o fazem de borla. Eis um mistério, que me intriga há muito e sinceramente gostava de ver esclarecido: existirão jornalistas que se curvam de borla? Não estou a falar dos defendem o emprego, ou dos que obedecem à voz do dono por reflexo. Estou a falar dos que convictamente acreditam que o dono tem razão e que a função deles é espalhar essa razão pelas massas. Estou a falar dos que acham de facto que o bando do dr. Costa constitui uma bênção para o país. Estou a falar dos que julgam, no fundo do fundo do coração, que o país está no bom caminho.

Existem “jornalistas” assim? Caso existam, convém ter pena deles, e talvez um programa de apoio psiquiátrico. É que a prostituição é um ofício, a idiotia é uma doença. Se qualquer subordinação ao poder é incompatível com o jornalismo, a subordinação voluntária e desinteressada ao peculiar poder vigente é incompatível com a saúde pública. Pelo menos o sr. Filipe é saudável. Mas não é um jornalista. De resto, até lhe tiraram a carteira, proeza estranha num contexto pouco democrático. Num contexto democrático, boa parte da classe ficaria sem ela. E “classe”, aqui, é força de expressão.