Nos últimos anos temos assistido ao advento do que muitos designam como o “mundo multipolar”, vendendo a ideia da fragmentação da comunidade internacional como uma ideia de “democracia avançada” e promotora de maior segurança e justiça. A evidência — não bastasse o simples pensamento teórico — tem demonstrado o contrário.
Desde a resolução da Guerra Fria e, sobretudo, do colapso da URSS e das repúblicas satélite da Cortina de Ferro e do fim das guerras civis nos Balcãs que o mundo ocidental vivia um período de paz prolongado, sem conflitos entre Estados. A manutenção desta paz, alargada às suas proximidades imediatas, foi possível apenas no quadro da integração europeia através da União Europeia e das instituições que antecederam a sua criação e consolidação, pela força de dissuasão operada pela aliança defensiva do Atlântico Norte (NATO) e pela influência diplomática e poder económico da União Europeia e dos Estados Unidos da América além das fronteiras do designado “mundo ocidental alargado”.
Diversos académicos e especialistas nas áreas da defesa e das relações internacionais referem-se a este período como “Pax Americana”, referente ao período pós-1945, com o estabelecimento dum quadro global baseado no direito internacional, na diplomacia baseada na Organização das Nações Unidas (ONU) e na cooperação económica internacional. Desde então, os EUA assumiram um papel global inédito que, acoplado à consolidação das organizações internacionais, criaram um modelo de interação entre Estados baseado em regras mutuamente reconhecidas, reduzindo o espaço para a resolução armada de conflitos económicos, diplomáticos e territoriais.
Ao longo da última década, diversos acontecimentos motivaram a erosão da interação com base no direito internacional, começando com o advento da insurgência islâmica jihadista operada pelo Estado Islâmico do Iraque e Levante (ISIS) na Síria e Iraque. Apesar de ter sido formada uma aliança internacional, que incluía EUA, UE e Federação Russa para o combate ao ISIS, a cooperação não se estendia ao objetivo final de derrube do regime autoritário de Bashar al-Assad e a libertação efetiva do povo sírio. A vaga migratória de 2015 para a Europa, através das rotas mediterrânicas ocidental (entrada pelas ilhas italianas) ou oriental (através das ilhas gregas e Balcãs Orientais), desestabilizou a política interna da União Europeia, criando uma onda de euroceticismo e hostilidade perante a democracia liberal, em especial na Hungria e Polónia.
Um ano mais tarde, o Reino Unido aprovava um referendo para a primeira saída de um Estado-membro da União Europeia, meses antes da eleição de Donald J. Trump para a presidência dos Estados Unidos, com um programa protecionista, isolacionista e crescentemente hostil à intervenção diplomática, económica e militar defensiva dos EUA na Europa (ainda que levantando questões legítimas quanto à excessiva dependência dos países europeus da NATO em relação aos EUA) e Médio Oriente.
Associadamente, a passividade da UE, EUA e mundo democrático perante os massacres civis da Federação Russa de Vladimir Putin na Chechénia (1999–2000), Geórgia (2008) e Ucrânia (2014), em total desrespeito pelas convenções internacionais, alimentou as pretensões dos antiliberais.
O regresso dos EUA ao isolacionismo internacional pré-1945 criou um ambiente global de incentivo às ações hostis de potências autoritárias, como se veio a comprovar com o bombardeamento indiscriminado do povo sírio pelo seu próprio governo (ainda que ilegítimo) com o apoio de Putin, a crescente repressão da minoria islâmica Uyghur em Xinjiang, as ações hostis no Mar do Sul da China e as ameaças crescentes à República de Taiwan pela China de Xi Jinping, a prossecução duma política de confrontação pela Coreia do Norte de Kim Jong-Un, a perseguição da minoria Rohingya em Myanmar, …
Desde o início da pandemia do Covid-19, a regressão da primazia do direito internacional acelerou, com um backslide democrático em diversos países, dentro e fora da esfera ocidental. O falhanço da retirada dos EUA do Afeganistão, levando ao colapso do governo democrático afegão e à rápida tomada de poder pelos Talibã, são um exemplo paradigmático deste movimento, ao qual se juntam a repressão agravada sobre mulheres e população secular no Irão teocrático do Ayatollah Khomeini ou as tensões entre Arménia e Azerbaijão sobre o estatuto do povo arménio de Artsakh. A renovada invasão — em larga escala — da Rússia de Putin à Ucrânia foi a última gota dum copo que já estava (há muito) cheio no combate entre democracias e regimes autoritários.
Desde então, tem sido avançado no palco internacional a ideia do fim da “hegemonia ocidental” e do advento duma “nova ordem mundial”, assente em diversos polos de interesses económicos e militares, criando áreas de influência territorial sobre as quais potências autoritárias exercerão o seu poder em desrespeito pelo direito internacional e por princípios básico de autodeterminação e de respeito pelos direitos humanos. As novas tensões entre Belgrado e Pristina sobre o estatuto kosovar, o deslocamento forçado dos arménios de Artsakh ou a alimentação do reavivar do conflito israelo-palestiniano com o suporte do Irão (e, quase certamente) da Rússia às ações terroristas do Hamas e Hezbollah são (apenas) mais uma demonstração do que nos espera se forças como China, Irão e Rússia levarem avante a sua política de degradação da hegemonia democrática — não necessariamente ocidental.
Este prometido Mundo Novo não tem nada de Admirável. É um futuro sombrio, no qual faltam regras comuns, mecanismos de contrapeso e certezas. Exceto uma: a asfixia da democracia e da liberdade. Não quero este mundo, e nenhum dos democratas o devia querer.