Um Estado que funciona às vezes. O que aconteceu no quartel dos Bombeiros Voluntários de Borba é um exemplo desse Estado-máquina fiscal que sabe ao cêntimo quanto ganhamos mas que se vai esboroando fora dos holofotes da propaganda e das actividades da colecta: segundo o comandante dos Bombeiros de Borba declarou ao Correio da Manhã um grupo de 20 pessoas dirigiu-se ao quartel dos bombeiros para pedir auxílio para uma vítima que se encontrava inconsciente. Os bombeiros acharam que a pessoa não estava inconsciente e que se devia sim contactar o 112. A partir desse momento “os elementos do grupo iniciaram agressões físicas a um dos elementos que os atendeu e esse elemento refugiou-se dentro das instalações, fechando a porta. As pessoas acabaram por partir o vidro da porta de entrada e forçaram a porta”. Os elementos do piquete que também se encontravam de serviço refugiaram-se dentro das viaturas e das instalações “com o objetivo de garantir a sua segurança.” Entretanto já se contavam dois bombeiros com ferimentos ligeiros, um por agressão a murro e o outro por causa dos vidros partidos. Em seguida veio a GNR para garantir a segurança dos bombeiros. Por agora a GNR ainda não precisou de chamar ninguém para garantir a sua própria segurança mas lá chegaremos.
Enfermeiros, médicos, professores, polícias e agora já os bombeiros estão a transformar-se nos sacos de pancada de um Estado que não respeita nem se dá ao respeito: Nos três primeiros meses deste ano, a Direcção-Geral da Saúde recebeu quase quatro centenas de queixas de violência no local de trabalho. Há quatro queixas por dia feitas por profissionais de saúde mas estima-se que muitos optem por não apresentar queixa. Nas forças de segurança o panorama é idêntico: o Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) de 2018 mostra que as agressões aos elementos das forças e serviços de segurança quadruplicaram em 2018 face ao ano anterior. Quanto às escolas a desautorização e o medo das responsabilidades levaram a que agora se chame a polícia para resolver situações que há algumas décadas eram solucionadas pelos professores e funcionários. A transformação das escolas públicas nuns sovietes de propaganda e ocupação obrigatória de tempos livres não foi suficiente para evitar que o início deste ano lectivo se assemelhasse a um campeonato de pugilismo com alunos a baterem em professores, um professor a agredir um aluno e pais quase a agredirem-se entre si.
Entre muitos desmentidos e declarações, os números têm confirmado a crescente incapacidade do Estado para garantir a segurança que é o mesmo que dizer a liberdade aos seus funcionários e aos cidadãos, sobretudo daqueles que não vivem nas zonas privilegiadas das cidades.
Como os líderes democráticos se deixaram cair na armadilha que diz que falar destes problemas é sinal de pertença à extrema-direita eles só são abordados quando explodem à frente de todos. Assim desde já sugiro que na nova disciplina “História, Culturas e Democracia” com que se pretende que os alunos “consigam interpretar o presente e agir de forma crítica” seja abordada a criação daquilo que em França se designa como os “territórios perdidos da República” ou seja os espaços – escolas, ruas, bairros – em que apesar de se estar em França não se consegue viver sob as leis francesas. Milícias islâmicas e gangues vários dividem, entre si, esses territórios. Nos últimos tempos, nesses bairros onde toda a panóplia do socialismo e do assistencialismo foi experimentada, surgiu uma nova actividade: faz-se uma chamada falsa para os bombeiros ou cria-se um incidente para atrair a polícia. Quando estes chegam vêem-se cercados por dezenas (às vezes mais de uma centena) de jovens armados. A novidade mais recente é que entre as armas usadas pelos bandos se contam morteiros. Mantes-la-Jolie; e Grigny são locais onde este ano tiveram lugar alguns destes confrontos. O próprio Halloween teve um entendimento muito especial na localidade francesa de Béziers: uma escola foi incendiada e ficou parcialmente destruída. Enquanto a escola ardia outro fogo começou num edifício abandonado. Quando a polícia ali chegou tinha à sua espera um grupo de 30 pessoas… Tudo isto claro não tem qualquer destaque noticioso fora de França (e mesmo em França…) Países como a França ou Portugal estão a transformar-se em cidadelas cujas oligarquias mandam os cidadãos utilizar os transportes públicos que eles não frequentam (a propósito, até quando vamos tolerar e pagar os efeitos dos graffiti nos comboios?); recorrer aos hospitais públicos a que eles não vão; colocar os filhos nas escolas públicas de que eles preservam os seus rebentos (as filhas da agora ministra da Modernização do Estado e da Administração Pública ex-Secretária de Estado Adjunta e da Educação continuam naquela escola privada estrangeira ou já conseguiram entrar numa escola pública portuguesa?), viver e trabalhar sem segurança. A luta de classes do nosso tempo é esta: os poderosos são aqueles que conseguem pôr-se a salvo a si e às suas famílias da legislação que eles mesmos fazem e dos serviços a que obrigam os outros a frequentar.
Quando é que se pode escrever a expressão “etnia cigana”? Por exemplo, para dar conta que “Ciganos portugueses são dos que mais se sentem discriminados” ou Falta de trabalho, educação e habitação digna. “Há discriminação em relação à comunidade cigana ? Ou quando se fazem notícias sobre a senhora secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade que pretende alertar os não ciganos para a ciganofobia subjacente à colocação de sapos de louça nas lojas? Espantosamente à senhora secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade não lhe ocorre a ideia verdadeiramente igualitária de alertar os ciganos para o sem sentido dessa superstição que, além de os levar a trocar uns supermercados por outros, os privará de estudar biologia, ir a museus ou até usar o portal Sapo. Ou achará a senhora secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade que os ciganos não fazem nada disso?
Mas voltemos à expressão “etnia cigana”. Segundo os Bombeiros Voluntários de Borba eram de “etnia cigana” as pessoas que forçaram a entrada no quartel e agrediram os bombeiros. A notícia do Correio da Manhã sobre os factos acontecidos em Borba, que a maior parte dos outros meios de comunicação transcreveu, referia serem ciganos os membros do grupo que entrou no seu quartel. Mas essa referência foi cortada em várias dessas notícias. Porquê? Porque nestas matérias vigora a mais poderosa das censuras: a auto-censura. Esta auto-censura é uma atitude defensiva em tempos de intolerância mas não só. É também um eixo fundamental dos activismos do ressentimento graças aos quais determinados grupos se vêem sempre como eternas vítimas e nunca como pessoas responsáveis pelo seu destino. Por isso somos bombardeados com estudos que provam as discriminações reais e imaginárias com que as etnias-vítimas se confrontam mas se apaga a informação que coloca essas mesmas etnias a protagonizar actos que os fazem sujeitos de acções violentas como estas agora acontecidas em Borba. Ou mais grave ainda se subestimaram actos de uma cruel desumanidade como os praticados por várias famílias ciganas que recrutam em Portugal pessoas com vulnerabilidades físicas e mentais para em seguida as escravizarem em Espanha. A etnicização é um inferno que está a corroer as sociedades e a etnicização intermitente está longe de ser inocente.
Raciocinando às vezes. A 24 de Maio de 2019: ADSE inverte ciclo e fecha 2018 com mais dinheiro em caixa. Sistema de saúde da função pública reforça almofada com 67 milhões de euros em 2018
Mas escassos cinco meses depois: 29 de Outubro de 2019: Tribunal de Contas diz Governo não tomou medidas para garantir sustentabilidade da ADSE. Se nada for feito e não entrarem beneficiários, sistema entra em défice em 2020 e fica sem almofada em 2026
Esta conversa das almofadas está ao nível do contar carneiros para dormir: quem não quer fazer reformas vive a sonhar almofadas, almofadões, travesseiros e outras estruturas almofadadas que ajudem a atenuar o choque da realidade. A anomia é tal que a notícia, em Maio, da almofada foi recebida com a mesma indiferença que a informação em Outubro sobre o fim da almofada. O sonho e o pesadelo cruzam-se.