Por estes dias, Portugal parece um país informe e quase esquizofrénico. A austeridade, diz o governo, acabou. Mas a Saúde e a Educação, por exemplo, continuam a ser vítimas dela, os impostos indirectos aumentam para os cidadãos inermes e as “cativações” já fazem parte do dia-a-dia. Os professores protestam, e, mais gravemente, protestam os médicos. E não é apenas a velha e fatal desproporção entre o discurso e a realidade, que se verifica, em maior ou menor grau, em todos os governos. É outra coisa, é algo de novo: é a estratégia essencial da governação, não um mero recurso, como manda a tradição, para animar as hostes dos fiéis e desanimar os adversários. Não é conjuntural: é estrutural. Há austeridade e não há austeridade. Nunca ninguém antes tinha conseguido fazer nada assim. Esquizofrenia.

O PC e o Bloco protestam, é claro. Em nome dos professores, em nome dos médicos, em nome de um sem número de outras profissões. Há greves, manifestações, discursos, ameaças, indignações. Mas sente-se o artifício em parte de tudo isso, sente-se, como nunca se sentiu, que nenhuma linha pode verdadeiramente ser entendida como uma linha de ruptura inegociável. Percebe-se bem porquê: PC e Bloco estão muito mais presos do que querem admitir ao governo. O que cada um tem a perder com variadas cedências fica muito abaixo do que poderia resultar de qualquer intransigência efectiva. Há, apesar de tudo, vários benefícios de influência e poder que se encontram assegurados e que não se vê como poderiam ser obtidos de outra maneira. Os discursos na Assembleia da República ilustram na perfeição a ambiguidade da situação e todos os truques da coisa. Uma coisa informe que apenas se quer perpetuar a si mesma. Em que outra circunstância, por exemplo, seriam o PC e o Bloco tão compreensivos para com a inacreditável sucessão de barbaridades pronunciadas pelo ministro da Defesa, Azeredo Lopes, a propósito de Tancos? Em nenhuma, mas mesmo nenhuma.

A esquizofrenia e a informidade encontravam-se já inexoravelmente desenhadas no acordo que permitiu a António Costa, tendo perdido as eleições para Pedro Passos Coelho, chegar a primeiro-ministro? A supor a existência de limites de elasticidade nesses campeões de princípios que são o Bloco e o PC, não. Mas a suposição da existência de tais limites nesses herdeiros do leninismo era, desde o início, problemática, e António Costa, provavelmente, sabia-o perfeitamente. E assim chegámos aonde chegámos, a um mundo de ficção que o próprio PSD, segundo consta, igualmente abraçou, numa mais que duvidosa estratégia de sobrevivência.

Há, é claro, muito de cinismo em tudo isto, mas não se ganha nada em denunciar turpitudes morais residentes em decisões políticas. Não muda nada e perde-se o latim. A verdadeira questão que interessa é outra: é a de saber quanto tempo se pode continuar a viver numa ficção esquizofrénica e informe? Claro que tudo depende do mundo à nossa volta e da União Europeia em primeiro lugar. Mas, imaginando que nada piora excessivamente por essas bandas, a resposta é: por muito tempo. Se Rui Rio conta com uma implosão da “geringonça” por um motivo ou outro, bem pode tirar o cavalinho da chuva. Aquilo foi feito para durar. E nada, psicológica ou sociologicamente, dispõe de verdadeiro poder para quebrar a ilusão da ficção.

Portugal tem uma longa tradição de apego ao faz-de-conta como modo de viver e ela encontra-se bem viva entre nós. Basta ligar a televisão e é faz-de-conta do princípio ao fim. Do faz-de-conta dos grandes e nobres sentimentos ao faz-de-conta da nossa imorredoira importância universal. Costa, honra lhe seja feita, percebeu isso como ninguém e com uma boa consciência à prova de bala. Faz de conta que a austeridade não é austeridade e conseguiu que PC e Bloco fizessem de conta que protestam.  Uma receita garantida para o sucesso. Sobretudo porque nós também gostamos de fazer de conta. A incoerência e o implausível não têm de nos embaraçar.

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