Ninguém no seu perfeito juízo, face à possibilidade do PS vir a ganhar as eleições, deseja vê-lo sem um programa de governo credível e, sobretudo, nas mãos de gente que durante anos e anos andou a girar em torno de Sócrates ou que segue os conselhos de Mário Soares na sua última e terrível encarnação. Porque, a ser este último o caso, a fatal consequência seria metermo-nos numa valente alhada da qual a nossa preciosa pele sairia muito chamuscada. É no entanto difícil imaginar, olhando para o que o PS mostra ao conjunto da população, mesmo àquela que não é aficionada da política, como pode António Costa mudar esse triste estado das coisas. De qualquer maneira, não custa enumerar uma pequena lista de obras mentais que caberia levar a cabo.
Em primeiro lugar, António Costa deveria esforçar-se por mudar António Costa. Entusiasmou-se com o Syriza, depois não. Quis um candidato presidencial, depois outro, para no fim, pelo menos no fim de até agora, se contentar com o que Soares lhe impõe. Faz um discurso aos portugueses, e depois outro aos chineses. Quer um retorno ao “vocabulário” da esquerda, supostamente colonizado pelo da direita, e depois entusiasma-se com o Estado “empreendedor”. Entre muitas outras coisas. Com tanta hesitação, para que queria Guterres? Ele próprio basta.
Em segundo lugar, António Costa poderia bem levar o PS a abandonar a tentação lírica que se lhe tornou quase uma segunda natureza. Comparar os aviões da TAP às caravelas dos descobrimentos não dá. E o excessivo apelo à linguagem do coração, além de já não comover ninguém por aí além, falseia o debate político. Contrapor aos “cofres cheios” o sofrimento das pessoas releva da pura e simples desonestidade: o sofrimento seria bem maior caso o Estado não pensasse no amanhã. O “Sermão na Montanha” ocupa na nossa tradição um papel crucial, mas não certamente como cartilha política.
Em terceiro lugar, António Costa devia criticar sem tergiversações aquilo que declaradamente vai contra o interesse nacional. A greve dos pilotos da TAP, por exemplo. Não o fazer torna-o patentemente evasivo e não cria sem dúvida em ninguém a ilusão de uma vasta sabedoria política. A não ser que ele acredite verdadeiramente que Mário Soares tem razão quando afirma que com o PS no poder não haverá mais greves de comboios, metros e TAP. Tanta fé nas possibilidades taumatúrgicas da sua pessoa excederia claramente o verosímil. Mas, enfim, António Costa já acreditou em José Sócrates, ao ponto de aceitar ser o seu número dois, e tudo é possível.
Em quarto lugar, António Costa deveria incitar as várias cabeças do PS a procurarem um outro significado para a palavra “socialismo” que não se resuma ao estatismo e à fixação nas empresas nacionalizadas e “de bandeira” (horrível expressão). O problema não é uma questão de vocabulário: é de conteúdos. Do velhíssimo vocabulário da esquerda, qualquer português que leia jornais e televisão está muito a par.
E a demanda de ideias novas não se faz descobrindo um livro que nos dê uma martelada na cabeça. Mas é o que, mais uma vez, está a acontecer. Segundo as últimas notícias, os socialistas dispõem-se agora a “pensar grande” e a avançar com espírito visionário, sob o impulso da senhora Mariana Mazzucato, autora de um livro intitulado “Estado Empreendedor”. Os exemplos dados em Portugal pela académica em questão foram os dos Estados Unidos. O PS ficou entusiasmado. Depois da Finlândia e depois da Irlanda, como nos idos de Sócrates, Portugal, para o PS, vai querer ser como ele de repente descobriu (erradamente) que são os Estados Unidos.
Uma coisa é certa. O PS quer consumo, muito consumo, consumo a rodos, na velha tradição do capitalismo. Com a diferença (em parte relativa) que é o Estado que vai pôr toda a gente a consumir, acrescida de uma outra diferença (desta vez absoluta): que o quer fazer com dinheiro que não há. Gastar o que não há – ou quase de certeza não haverá – produzirá dinheiro. Aparentemente, é esta ideia que subjaz ao recente “cenário macroeconómico” do PS. O capitalismo socialista vê aqui um círculo virtuoso. Mas, como se sabe, a melhor maneira de transformar um círculo virtuoso num círculo vicioso é afagá-lo constantemente. E os regulares afagos socialistas do passado mostraram-nos os muito desagradáveis resultados de tal prática.
Em quinto lugar, e quase resumindo tudo, António Costa deveria procurar para o PS um firme ponto de ancoragem na realidade. O que presume o abandono do culto da misteriosa “vontade política”, que é o que se pede normalmente quando a realidade resiste ao que nos dá mais jeito. Como se, por exemplo, o aeroporto de Beja (um exemplo entre muitos) não funcionasse por falta de “vontade política”. Há resistências da realidade que devem ser a primeira coisa a ter em conta quando se quer agir politicamente, e muitas delas são insusceptíveis de serem vencidas por qualquer mágica acção da vontade.
Reconhecer estas coisas e mais algumas serviria sem dúvida para o PS de António Costa, ganhando as eleições ou não, ajudar a que Portugal se tornasse uma sociedade mais decente, simultaneamente consciente da realidade e obedecendo ao imperativo da busca da justiça, uma sociedade melhor. Seria, de resto, uma boa forma de comemorar o 25 de Abril no que de mais valioso teve.
Mas, desgraçadamente, tudo indica que se trata de um sonho dificilmente realizável. As ilusões do passado formam um núcleo persistente que se cristalizou numa identidade inamovível para além de algumas agitações de superfície. A tentação lírica persistirá e os espúrios argumentos do coração, com o seu inevitável cortejo de indignações, continuarão a saltar para a boca de cena sempre que os argumentos substantivos falharem. O pequeno tacticismo substituirá um verdadeiro sentimento de responsabilidade. O “socialismo” continuará preso à simples fixação no Estado como tutor burocrático da sociedade. E a confiança na magia da “vontade política” permitirá continuar a ignorar altivamente a realidade empírica.
Se não for assim, chapéu para António Costa. Mas quem hoje ainda acredita que não vai ser assim? Um PS alternativo não passa verossimilmente de uma figura da imaginação.