Dava-me hoje muito jeito ter pelo menos um bocadinho daquele particular génio de Agustina Bessa-Luís para os aforismos com que iniciava os seus romances e que, mesmo dentro deles, apareciam vezes sem conta, como abertura para vários outros romances possíveis. Mas, pobre de mim, falta-me o génio e a sabedoria não me sai da boca com aquele apetecível perfume de perenidade que eu muito invejo. Deixo, no entanto, aqui, porque preciso, a minha tosca tentativa: Se a história nos incomoda, resta-nos a psicologia para a disfarçar.

E precisava deste princípio, ou de outro que dissesse o mesmo muito melhor, porque andei a ler algumas das reacções ao artigo que Cavaco Silva aqui publicou na semana passada e à entrevista que deu a Maria João Avillez na CNN. Tanto no artigo como na entrevista, ambos excelentes, Cavaco Silva ocupou-se de factos históricos que relatou com aquele minucioso rigor que lhe é costumeiro e que tem o dom de irritar muita gente, talvez por parecer desnecessário e inutilmente limitador da liberdade criativa do nosso pensamento. (Na entrevista, não se limitou à história: disse também coisas que me pareceram muito acertadas sobre o absurdo da “regionalização”, a mendaz narrativa socialista – e de vários sectores do próprio PSD – sobre o governo de Passos Coelho e ainda sobre a guerra da Ucrânia.)

Não vou repetir aqui a lista dos factos enumerados por Cavaco. Permito-me apenas sublinhar que são mesmo factos, isto é, realidades que sobrevivem a tentativas de interpretação que as pretendam subverter. O que me interessa hoje são as reacções que o artigo e a entrevista provocaram em certas áreas. Mais precisamente, um traço surpreendentemente comum a todas as reacções mais ou menos explicitamente negativas de que a imprensa nos deu conhecimento. Qual é esse traço? O elas exorbitarem de explicações psicológicas. É como se, subitamente, toda aquela gente se tivesse descoberto uma vocação secreta e irreprimível: a exploração dos meandros secretos da psique humana, particularmente no que toca à alma de Cavaco Silva.

Marcelo, é verdade, deu o mote, para falar da sua própria alma. Declarou sobre o artigo: “Vou ler, vou interiorizar e não vou comentar”. Terei sido só eu a achar estranho o verbo “interiorizar”? Não porque suponha o nosso actual Presidente, note-se, carecido de “interior”. É verdade que ele nos habituou a uma frenética actividade de “exteriorização”, mas tenho a certeza que a sua alma contém tantas profundidades e abismos como a de qualquer outro mortal. Simplesmente, não é o que se costuma dizer nestas circunstâncias. “Analisar”, ou até “meditar”, seria mais natural. “Interiorizar”, no entanto, parece estranho. E uma das razões da estranheza é o teor psicológico da palavra, o facto de ela apontar para um processo mental complexo que evoca um esforço particular de assimilação de algo radicalmente exterior e vagamente ameaçador. Seja como for, estamos mesmo dentro da psicologia.

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Com António Costa, a coisa é mais directa. Há psicólogos e psicólogos. Sondou as profundidades de um só golpe e, supõe-se, sem necessidade de “interiorizar” grande coisa. “Cavaco Silva preocupa-se com o seu lugar na história”, decretou. Note-se que não procurou refutar nada do que Cavaco disse. Foi directo ao motivo por detrás das palavras. Numa frase, eis uma alma exibida em toda a sua nudez. Para quê mostrar a superioridade do seu próprio valor e a excelência dos seus feitos em prol da Pátria quando tudo pode ser dito assim depressa com umas breves palavrinhas? A sinalização da intenção dispensa, obviamente, a perda de tempo com a argumentação. O que dá um jeito dos diabos quando se tem a pressa inerente à conveniência.

A lição de Costa imperou no PS. Em entrevista ao Observador, Ana Catarina Mendes aplicou-se com igual empenho na explicação psicológica. Assim, Cavaco Silva sofreria de um “sentimento de azedume e ressentimento” e de “despeito”. No fundo, é o aprofundamento da tese do “lugar na história”, com a diferença que aqui contamos com uma caracterização mais detalhada dos motivos. A psicologia das profundidades pode-se sempre desenvolver no sentido de melhor capturar o seu alvo. Que o diga Pedro Delgado Alves, que, também em entrevista ao Observador, diagnosticou, com uma seta bem apontada ao essencial, o mal do seu objecto de estudo: a “dimensão narcísica” que (reconhece magnanimamente) “é inevitável em qualquer ser humano”. E, como seria de esperar, tivemos igualmente direito, desta vez no Expresso, a Ascenso Simões. A sua psicologia é caracteristicamente mais rude, como convém a um homem que ambicionou destruir com as suas próprias mãos o Padrão dos Descobrimentos: “Cavaco tem inveja de Costa”. Não são precisas as falinhas mansas do “ressentimento” e do “narcisismo”. É mesmo inveja pura e dura – e isso toda a gente percebe. Mas, como para mostrar que o PS é um partido verdadeiramente psicológico, Ascenso Simões fala não só para o povo, mas também para os eruditos: “Cavaco vive com um problema existencial – que Costa o ultrapasse no seu tempo de «premier»”. Satisfeitas as premissas desta nova analítica existencial da corrida de fundo, Ascenso Simões pode voltar ao contacto com o povo: a visão das coisas de Cavaco é uma visão “mesquinha”.

Este florilégio psicológico do PS mostra-nos um partido capaz de analisar a alma humana nas suas múltiplas dimensões e hábil na integração no seu aparato conceptual de todos os requisitos do que dantes era conhecido pelo nome de “filosofias da suspeita”. Freud e Nietzsche estão bem presentes aqui, embora em versão simplificada, até porque o PS é um partido de massas. Mas – atenção! – esta dimensão teórica de que o PS se pode legitimamente ufanar transcende o espectro partidário no seu sentido mais restrito. Não fiz nenhuma investigação aturada, mas reparei que o amor pela psicologia se encontra também noutros lugares. Bárbara Reis, por exemplo, escreveu no Público um artigo em que refuta, ponto por ponto, o comentário de uma leitora que manifestou no site do jornal o seu acordo com o texto de Cavaco. Não refuta o artigo de Cavaco, note-se – refuta o comentário da “Pipa” (assim assina a leitora que Bárbara Reis procura demolir com método e saber). E qual a razão de tal exercício? Eis que volta a psicologia. Para mostrar que os “fãs de Cavaco” (é assim que ela diz) navegam num “amor ardente”, onde surgem “ondas de paixão” geradas por uma “devoção sebastiânica” propriamente inaudita. E, último exemplo, para continuar no Público, a sua recente colunista da última página, Carmo Afonso, manifesta, também ela, uma assinalável proficiência psicológica, num artigo consagrado ao texto de Cavaco. Infelizmente, é-me difícil segui-la, por razões que não posso explicar sem correr o risco de me envergonhar. Julguei, no entanto, perceber que atribui um significado especial ao uso dos pronomes possessivos por parte de Cavaco Silva – uma preocupação surpreendentemente gramatical, vinda de quem vem.

O que é que torna tão curioso este recurso maciço a explicações psicológicas para pôr em questão o artigo (e a entrevista) de Cavaco? É que – e aqui a explicação não é psicológica: é mesmo política – tal afã explicativo serve para evitar qualquer confronto directo com o próprio texto e com o que ele diz. Na presumível impossibilidade de uma refutação, recorre-se ao exercício que consiste em atacar o carácter do autor do texto. O truque é velho como a humanidade e nem sequer as roupagens são particularmente novas. O problema é que, para quem souber ler, a diferença entre Cavaco e Costa acaba mais saliente – e, claramente, a favor de Cavaco. O que o seu artigo dá a ver é um homem que soube detectar os problemas, analisá-los, e, em muitos casos, resolvê-los. O que a enxurrada de comentários psicológicos ao artigo (a começar pela breve resposta de Costa) mostra é uma coisa muito diferente: é uma habilidade, variável consoante os casos, mas indiscutivelmente máxima em Costa, em contornar os problemas. Digo isto sem precisar de navegar em “ondas de paixão” pelo primeiro nem em entusiasmos negativos pelo segundo. Será talvez defeito meu, mas, com a oposição que ele teve até agora, já “interiorizei”, como diria Marcelo, António Costa. Quer dizer: neste caso, já me conformei à mediocridade que ele traz consigo. No fundo, quem é que não prefere, uma vez ou outra, contornar os problemas a resolvê-los? E quem é que não se apanha, uma ou outra vez, quase inconscientemente, a admirar quem se excede nessa dúbia arte? Mas é Cavaco quem tem razão. Mil vezes razão. Mais de mil vezes. Seria bom que alguém pegasse na sua lição.