Afinal, qual é o impacto orçamental de cada cenário para o descongelamento das carreiras dos professores? Eis um facto extraordinário sobre a negociação entre sindicatos de professores e governo, que hoje conhece mais um capítulo: o governo não tem uma resposta objectiva para esta pergunta-chave. Esta desafinação é extraordinária por dois motivos, nenhum deles abonatório para a competência do governo. Primeiro, o Ministério da Educação lida activamente com esta reivindicação dos sindicatos de professores desde 2018, e nessa altura os cenários foram feitos e o seu impacto orçamental foi detalhado pelo ministério de Mário Centeno — bastaria actualizar e construir a partir daí. Segundo, sendo esta a reivindicação mais ruidosa dos sindicatos nos protestos dos últimos meses, soa incompreensível que o governo se tenha sentado sucessivamente à mesa de reunião sem ter os seus limites orçamentais devidamente definidos.

Há cerca de 10 dias, o ministro João Costa informava que o governo estava (finalmente) a fazer estudos comparativos, nomeadamente para avaliar cenários e propostas possíveis (e respectivos impactos noutras carreiras da administração pública). É realmente impressionante ouvir tal anúncio após meses de protestos, greves e negociações. Mais caricato é que, 10 dias antes deste anúncio do ministro da Educação, o primeiro-ministro já tinha um valor na ponta da língua para essa questão: descongelar a carreira dos professores implicaria 1300 milhões de euros de despesa anual e permanente — na medida em que, por razões de equidade, o descongelamento teria de ser alargado a todas as carreiras da Administração Pública.

Mistério: se o primeiro-ministro já tinha um número taxativo, porquê continuar a fazer contas? Talvez por isto: o número avançado por António Costa está errado — não surgiu na calculadora, mas sim nos gabinetes de estratégia política, que insuflaram os valores para defender a inviabilidade das pretensões sindicais. Mais do que rigor orçamental, o governo apostou numa guerra política e mediática de números contra os sindicatos, sob o mote da responsabilidade orçamental. Em 2019, António Costa ameaçou demitir-se se, no parlamento, fosse aprovado o descongelamento da carreira dos professores — e a chantagem saiu-lhe bem. Em 2023, com maioria absoluta e sem bodes expiatórios, a estratégia saiu-lhe mal e forçou vários recuos.

Duas razões explicam o falhanço. Em primeiro lugar, o governo recusou trabalhar no dossier do descongelamento das carreiras e por isso apresentou números contraditórios. Em 2019, o então ministro das Finanças Mário Centeno expôs as suas contas e publicou um comunicado detalhado: a recuperação integral do período congelado “teria um impacto na despesa permanente com salários de docentes de 635 milhões de euros, um custo total de 800 milhões de euros, se incluídas as outras carreiras”. Ainda em 2019, esse valor havia sido revisto pela UTAO para 567 milhões de euros, se retirados os descontos (IRS e Segurança Social).

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Agora, em 2023, os valores foram revistos em baixa. De acordo com o Ministério das Finanças, o período descongelado (2 anos, 9 meses e 18 dias) já implica um investimento permanente e anual de 244 milhões de euros, aos quais se acresceriam 331 milhões de euros pelo período remanescente (6 anos, 6 meses e 23 dias), somando um impacto total na despesa estrutural de 575 milhões de euros anuais. A estes valores teriam ainda de ser adicionados o descongelamento integral das restantes carreiras da Administração Pública (cerca de 200 milhões de euros) e implicações orçamentais suplementares de outras medidas em negociação, se aplicadas à carreira docente. Ou seja, com tudo somado, o resultado leva-nos a um valor anual de, pelo menos, 800 milhões de euros — muito longe dos 1300 milhões de euros a que o primeiro-ministro aludiu. Pode ser mais, consoante as medidas negociadas. Mas também pode ser menos, se o descongelamento for parcial. Ou seja, não se sabe ao certo, porque só agora o ministro João Costa pediu “estudos de comparabilidade” para averiguar cenários mistos.

Em segundo lugar, a negociação com os professores corre mal ao governo porque o PS esgotou a margem de manobra na gestão de expectativas. Sim, 800 milhões de euros de impacto permanente e anual é um duro golpe nas contas públicas e junta vários ingredientes de irrazoabilidade. Mas como pode o PS argumentar nesse sentido quando, desde os anos de geringonça, elevou as expectativas de dar tudo a todos? Quando, nos erros da governação, se comporta sucessivamente como se existisse dinheiro para desperdiçar — seja no dossier da TAP, onde enterrou mais de 3 mil milhões de euros, seja na Saúde, onde escolheu romper com uma PPP no Hospital Beatriz Ângelo e assim gastar mais dinheiro para servir pior a população. Ou ainda quando, com os actuais níveis de inflação, a receita fiscal do Estado aumenta e o poder de compra dos cidadãos diminui. Com mais de 7 anos de governo e um anunciado “virar de página da austeridade”, a falta de dinheiro tornou-se um argumento coxo para o PS convencer os professores ou mesmo a população em geral, que apoia as reivindicações sindicais.

Eis, portanto, o culminar de uma estratégia falhada. O governo tentou travar uma guerra orçamental contra os professores mas, por culpa própria, perdeu-a. E agora? Agora só sobra disfarçar: depois de abandonar medidas reformistas e acumular cedências, o governo chama de “aproximações quase históricas” às suas derrotas.