Recordo 19 de Agosto de 2003. Recordo a morte de Sérgio Vieira de Mello, chefe da Missão da ONU no Iraque, mas que eu havia conhecido em Fevereiro de 2002 em Díli como Representante Especial do Secretário Geral das Nações Unidas para Timor Leste. Recordo o atentado contra o Hotel Canal, em Bagdade, e que causou a morte a 22 elementos do pessoal das Nações Unidas e fez mais de 150 feridos – um ataque que haveria de servir de motivação para, no ano seguinte, a Assembleia Geral da ONU proclamar o dia 19 de Agosto como o Dia Internacional da Ajuda Humanitária e o ter dedicado aos que dedicam a sua vida, e por vezes a perdem, a cuidar, a levar a ajuda aos que mais dela necessitam.

E é Agosto, no âmbito do Ano Europeu para o Desenvolvimento (2015) celebrado sob o lema ‘o nosso mundo, a nossa dignidade, o nosso futuro’, o mês dedicado à Ajuda Humanitária.

A ajuda humanitária traduz toda e qualquer ação que contribua de forma imediata e eficaz para minimizar os efeitos de crises naturais ou provocadas pela ação humana junto das populações diretamente afetadas (adaptado do site do Camões, Instituto da Cooperação e da Língua).

Nunca como no imediato rescaldo da II Guerra Mundial – e do esforço colossal de assistência humanitária que foi necessário mobilizar – o mundo registou um número tão elevado de pessoas em situação de emergência humanitária. São mais de 1.200 milhões de pessoas as que vivem em países frágeis e afetados por conflitos e, em termos globais, foram cerca de 1,5 mil milhões de pessoas as que foram afetadas por desastres naturais. Na sua maioria vivem em países em desenvolvimento, sem recursos para responder às necessidades arroladas e sem respostas internacionais que lhes permitam garantir a dignidade a esses milhões de seres humanos, alguns deles refugiados – logo sem poderem contar com a proteção dos países dos quais são nacionais… conseguem imaginar situação de maior vulnerabilidade, de falta de fé no futuro?

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E são muitas destas pessoas as que partem dos seus lares ou de um dos vários campos (de acolhimento, de refugiados, de transição – chamem o que lhe chamarem não são substitutos dos projetos de vida que se viram forçados a abandonar) rumo à Europa, a essa Europa que erige a ajuda humanitária como valor fundador. Chegam traficados, enganados, em busca de uma vida, deixando para trás estados em acelerada deterioração, conflitos, crises, fomes, perseguições, violações dos direitos humanos e fontes de subsistência destruídas pelas alterações climáticas. Uma nova vaga de refugiados, dos tipificados nas Convenções Internacionais, mas também dos novos, dos ambientais por exemplo, daqueles que não têm respaldo num direito internacional que avança de forma demasiado lenta face à emergência dos problemas a que tem que dar resposta.

Mas se os conceitos tardam – estão em reformulação e vale a pena seguir o trabalho da academia e da União Africana nesta matéria – o financiamento esse nunca é suficiente, tarda e as modalidades de desembolso do mesmo deixam muito a desejar. Se na última década aumentou o número de pessoas que precisam de ajuda humanitária, bem como custo dessa ajuda, a comunidade internacional não soube estar à altura deste desafio e responder aos apelos humanitários lançados pelas Nações Unidas.

E se não há nada de novo nesta constatação – quando em 2008 passei pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, como conselheira política para a prevenção e reconstrução pós-crise, e durante os anos em que leccionei a cadeira de organização de missões humanitárias no ISCSP, a conversação era exatamente a mesma – a mesma é cada vez mais inaceitável.

Hoje sabemos, mais e melhor do que nunca, o que se passa em cada canto do mundo, como isso afeta as pessoas e fere a nossa humanidade comum e, sobretudo, como responder de forma eficaz. Ora este grau de conhecimento – vis à vis a uma época em que estas realidades ficavam perdidas numa qualquer agenda humanitária, preocupação exclusiva de organizações não governamentais que financiávamos para apaziguar as nossas consciências – torna a inação desumana, imoral, criminosa. Não salvar uma vida é, cada vez mais, um ato informado.

E é nesta consciência coletiva – a existente e a desejável – que a comunidade internacional tem trabalhado, produzindo princípios e boas práticas que orientam o “bom doador humanitário” e aos quais Portugal aderiu em 2006; com a União Europeia a gerar o seu Consenso Europeu em matéria de Ajuda Humanitária e que deve guiar a ação dos estados membros e das instituições; entre várias outras iniciativas que forjam um pensamento, uma prática e lições aprendidas que permitem  responder de forma mais eficaz aos inúmeros desafios.

Portugal acabou de aprovar (13 de Agosto de 2015) a Estratégia Operacional de Ação Humanitária e de Emergência, bem como a criação da Unidade de Coordenação de Ação Humanitária e de Emergência, que tem por missão implementar a Estratégia Operacional e garantir uma adequada coordenação das respostas de ação humanitária.

Trata-se da primeira estratégia portuguesa nesta matéria e que há muito era apontada como fundamental para potenciar uma das áreas às quais a cooperação portuguesa já dedicava uma parte significativa da sua atenção e dos seus recursos.

Mas por muito avisadas e inovadoras que as respostas sejam, elas carecem de uma abordagem holística e multilateral, e flexível. Cada crise encerra em si um desafio hipercomplexo, com uma multitude de respostas possíveis, mas que devem ser sempre desenhadas de baixo para cima e apropriadas nacionalmente, recusando as repostas concebidas de fora para dentro, mais orientadas para as disponibilidades dos doadores do que para as necessidades em causa. Uma resposta que trate das causas profundas dos conflitos – as assimetrias no acesso às riquezas e a pobreza – e construa sociedades resilientes. O ciclo crise / resposta pode e deve ser quebrado e é nisso que a comunidade internacional tem que estar empenhada.

Por outro lado, perante as mais mediatizadas crises prova-se claro que uma resposta puramente securitária, como tem sido a tentação de tantos, não chega sequer para perceber o problema e apenas serve para o reduzir a um argumentário que faz pouco pela solidariedade europeia – para não dizer que a corrói, instilando o medo nas sociedades de acolhimento. Mais uma vez a abordagem compreensiva é fundamental.

A solidariedade é um dever. Um dever tão fundamental como a justiça ou a garantia de todos os direitos humanos a todas as pessoas.

Neste Dia Internacional da Ajuda Humanitária, as Nações Unidas desafiam-nos, numa era digital, a ultrapassar o que nos divide, e usar o nosso poder e a nossa responsabilidade para construir uma sociedade mais humana.

A União Europeia, no seu Ano Europeu para o Desenvolvimento, interpela-nos para que em agosto aprendamos mais sobre a Ajuda Humanitária e compreendamos que se trata da nossa humanidade partilhada. É apenas disso que se trata. Do nosso mundo, da nossa dignidade, do nosso futuro. Partilhado.

Deputada do PSD, docente do ISCSP