A presidência Biden fez seis meses esta semana. Os comentários foram quase unânimes deste e do outro lado do oceano: a administração executou bem o plano de vacinação – os Estados Unidos atingirão a imunidade de grupo para o mês que vem – e o plano de estímulo económico já aprovado não tem precedentes na história americana. Falta resolver o problema da imigração ilegal – o número de detidos na fronteira sul duplicou nos últimos seis meses – e a polarização nacional mantém-se intocada. Tudo o que Biden consegue no seu período de “estado de graça” são 52 a 53 por cento da popularidade o que, na verdade, não é lá grande coisa. Mas não seria de esperar grande melhoria neste aspeto, tendo as conta as condições em que Biden “herdou” a América.

Os especialistas em relações internacionais americanos estão mais divididos do que os analistas de política interna. Os liberais internacionalistas estão satisfeitos, os realistas apreensivos. Mas partilham ambos da mesma ideia, estruturalmente errada: Biden tem uma doutrina. Mas por enquanto Biden tem apenas uma narrativa. O que não é pouco.

A narrativa Biden tem três elementos fundamentais, e um secundário. (1) No centro está a China, o inimigo sistémico, com o qual os Estados Unidos estão a disputar o poder, quer em termos materiais (que hoje ultrapassam muito as capacidades militares), quer em termos de reorganização da ordem internacional (i.e. na reinvenção das regras que determinarão as relações entre os Estados no futuro).

(2) Para enfrentar este adversário formidável, os Estados Unidos colocam-se na posição de “líderes do mundo livre”, numa tentativa de, por um lado, unir as elites e a população norte-americana desavindas contra um inimigo comum e, por outro, de agrupar as democracias de várias geografias que darão contributos diferentes a um todo coerente. Neste cenário há uma vertente competitiva, em que os EUA tentam recusar à China a chegada ao estatuto de grande potência, e uma dimensão cooperativa, em que Washington volta a tomar a dianteira da distribuição de bens comuns internacionais, desde logo no que respeita à doação de vacinas a países (especialmente amigos) que têm maior dificuldade de as obter.

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Até porque, segundo Biden, (3) o sistema internacional está bipolarizado entre democracias e autocracias. O entendimento entre uns e outros não é possível. Consequentemente, o que decorre atualmente é uma disputa política e moral sobre qual a melhor forma de governar os Estados e o mundo. E esse conflito poderá estender-se por anos ou mesmo décadas.

O elemento secundário é a Rússia, que, sendo uma autocracia, foi normalizada pelo presidente americano na Cimeira de Genebra. Adversário sim, mas uma “grande potência” a quem é reconhecido o direito de poder e influência em caso de não ultrapassar “linhas vermelhas”. Uma abordagem muito diferente da aproximação a Pequim que é hostil porque Washington não reconhece à China legitimidade internacional. A posição relativamente à autocracia russa é defensiva; a posição relativamente à autocracia chinesa é ofensiva.     

É assim que Biden quer que os norte-americanos e as democracias percecionem o mundo. Os realistas apoquentam-se, dizendo que o passo é maior que as pernas, que pode acossar a China e tornar o conflito mais iminente; os liberais congratulam-se pelo regresso americano à política de liderança e de poder, aplaudindo a narrativa que sintetiza elementos dos vários momentos de transição de poder ao longo do último século, adaptados à nova configuração do sistema internacional.

Generalizou-se a ideia de que quase todos os presidentes americanos têm uma doutrina. Mas lembram-se de que constava a Doutrina Obama? E qual era a Doutrina Bush? Biden, neste aspeto, tem a história do seu lado. É preciso uma narrativa que defina a política externa americana para a nova fase sistémica, a da transição de poder. E o presidente norte-americano tem consciência disso. As regras que desenhou com a sua equipa não são apenas para o seu mandato. São para o tempo que durar a transição de poder. O problema é que para que esse desígnio se concretize é preciso o envolvimento de muitos atores internos e externos que ainda estão a fazer contas à vida.

Mas uma doutrina é mais que isso: é um conjunto de regras simples mas profundamente poderosas que marcam décadas de política. A última digna desse nome foi a “Doutrina Truman” que saiu de um só discurso. Para que a narrativa Biden se torne na “Doutrina Biden” é preciso que tome forma de realidade política. E há muitas razões para que isso possa nunca vir a acontecer.