Estas férias falhei a Volta à França, o que é raro acontecer, até por causa da extraordinária beleza das paisagens lá da Gália, que nunca pára de me surpreender. Em contrapartida, não perdi os Campeonatos Europeus de Atletismo, em Zurique, nem os de Natação, em Berlim, que foram óptimos. Gosto de corridas, na pista e na água, e a imagem da felicidade nos rostos de atletas e nadadores, uma felicidade resultante do prazer de levar ao limite as suas forças próprias, é uma coisa que dá prazer ver.
Há filmes que dão isso razoavelmente bem. Não são certamente os maiores, mas são aqueles de que melhor me lembro: Chariots of Fire e o primeiro Rocky, quando Rocky Balboa, depois de treinos sem fim, sobe a correr, com o sol a raiar, a escadaria de um qualquer edifício de Filadélfia e experimenta a satisfação de ter atingido a plenitude das suas forças. Para não me julgarem demasiado fascista por causa do Rocky, apresso-me a dizer que esse sentimento de felicidade expresso no rosto daquelas criaturas se encontra, e por razões inteiramente compreensíveis, praticamente ausente da lamentavelmente admirável obra-prima do cinema nazi, Olympia, de Leni Riefenstahl. (Fui rever o filme: além de tudo o resto, as corridas fazem ainda vibrar, e, por acaso, vê-se Jesse Owens a rir-se depois de uma das suas quatro vitórias – e, já agora, no desfile inicial das selecções, a França e o Canadá fazem a saudação nazi.)
Isto, além de me ter levado a tentar emular Adam Peaty na piscina e James Dasaolu no corredor que vai da sala ao quarto, teve um benefício apreciável, o de distrair o espírito das actuais barbáries do fundamentalismo islâmico, sejam as do ISIS (ou Estado Islâmico), sejam as do Boko Haram, sejam as de qualquer outro dos inúmeros movimentos que se apoiam nas passagens mais violentas do Corão. Tem-se aplicado a essa barbárie, sobretudo à do ISIS, o adjectivo “medieval”. Não é só de uma forma impressionista que a palavra é legítima quando aplicada a essa cultura sem rostos. É legítima também porque esses movimentos vivem num mundo imaginário de califados e cruzadas de outros tempos (tal como o Hamas, cuja Carta, nunca renegada, contém nove referências às cruzadas), sinistra prova de arcaísmo civilizacional, um arcaísmo a que as sociedades democráticas não servem infelizmente de antídoto eficaz, como se tem visto.
Mas distraí-me realmente dessas coisas, e aproveitei o tempo livre para trabalhos atrasados, até que a leitura de um post da Helena Matos no blog Blasfémias me trouxe de novo para o mundo real. O post reenviava a um artigo recente (17 de Agosto) de Boaventura Sousa Santos, no site brasileiro Carta Maior, intitulado “Acusemos Israel”. O que diz Boaventura Sousa Santos? Várias coisas que, se postas em prática, conduziriam a curto prazo, e meço bem as palavras, a uma carnificina sem nome que em muito se assemelharia a um novo Holocausto.
Boaventura Sousa Santos começa por se perguntar se “simples cidadãos do mundo” poderão organizar “uma acção popular contra o Estado de Israel no sentido de ser declarada a sua extinção como Estado judaico”. E responde, claramente, que podem – e devem. Porque a própria constituição de Israel, enquanto Estado judaico, constitui um “crime contra a humanidade”, um “crime continuado”. A existência de Israel é um “crime contra a humanidade”, repito. Não qualquer acto particular: a sua existência.
Há, desde o princípio, vários problemas. “Cidadãos do mundo”, simples ou complexos, não representa um conceito bem definido, e não se percebe muito bem a natureza do processo conducente à tal “acção popular” que visaria a extinção – sublinhe-se: extinção – de Israel como Estado judaico. (Seria mais simples dizer a extinção de Israel tout court, ou será que o autor pensa que uma maioria árabe se declararia, feliz como tudo, israelita?) Além disso, como “extinguir” um Estado de fora? Porque o autor não pede aos israelitas que optem pela via que preconiza. Ele pede que os “cidadãos do mundo” extingam Israel. Todos contra um.
E será que Boaventura Sousa Santos se interrogou sobre o resultado imediato de tal extinção? Boaventura Sousa Santos imagina que da extinção de Israel surgiria “um Estado secular, plurinacional e intercultural”. É, no mínimo, perdoe-se, muita imaginação. Onde se encontram as bases para tal maravilha naquela região? Antes de avançar com uma tão radical proposta, antes de incitar o mundo a extinguir Israel, não conviria uma pequena investigação prévia? Eu digo-lhe sem um milímetro de dúvida o que aconteceria: o massacre de todos os judeus que não fugissem a tempo à mão não só dos palestinianos como de vastas populações árabes que, desde o princípio, sempre se recusaram a aceitar a existência de Israel e não fizeram nunca praticamente nada para o disfarçar, antes pelo contrário.
E sobre a questão de a própria existência de Israel ser um “crime contra a humanidade”? Boaventura Sousa Santos procura fundar tal tese em dois tempos. Primeiro, na relação de Israel com os palestinianos desde a sua fundação. E, segundo, em considerações várias sobre duas maléficas concepções sionistas, o “sionismo judaico” e o “sionismo cristão”, bem como numa suposta desmistificação das noções de “terra de Israel” e de “povo judaico” levada a cabo por um historiador judeu israelita, Shlomo Sand: ambas as noções seriam uma “invenção recente”, destinada, supõe-se, à eliminação de um povo (os palestinianos) da face da terra. Não comentarei nem os conflitos de Israel com os palestinianos, dos quais Boaventura Sousa Santos oferece uma visão que me parece em tudo diferente da aceitável, nem das considerações sobre o sionismo. Uma palavra sobre Schlomo Sand, é, no entanto, necessária.
“Como bem demonstra” Schlomo Sand, é assim que o autor escreve. E é pena que escreva. Porque o primeiro livro de Sand que Boaventura Sousa Santos refere, e deixarei por falta de espaço o segundo de fora, The Invention of the Jewish People (2009), foi objecto de críticas devastadoras, do Times Literary Supplement à New Republic, todas assentando na absoluta falta de fundamentação das teses defendidas pelo autor.
O problema não está, no entanto, na excentricidade dos propósitos defendidos por Sand ou na sua mais do que provável fraca sustentação. Há uma longa tradição de livros com propósitos excêntricos que fazem parte dos hábitos de várias disciplinas, e nenhum mal vem ao mundo disso (e várias vezes, por razões muito diferentesentre si, vem bem). Em 1987, por exemplo, saiu o primeiro volume de um livro de Martin Bernal, Black Athena: The Afroasiatic Roots of Western Civilization (a partir da segunda edição acrescentava-se: The Fabrication of Ancient Greece, 1785-1985), que defendia que as verdadeiras origens africanas e asiáticas da civilização grega haviam sido ocultadas pelo racismo dos historiadores do século XIX. As críticas que lhe foram feitas foram decisivas, e o livro não passa hoje em dia de um objecto de curiosidade intelectual.
O problema do livro de Sand é que todo ele é construído com o propósito político de provar a ilegitimidade do Estado judaico de Israel, negando qualquer legitimidade à pretensão dos judeus a retornarem à sua terra de origem. Um dos seus críticos escreveu que é a “invenção de uma invenção” e outro que só podem encontrar nele algum valor aqueles que só estão, desde o princípio, de acordo com as suas conclusões. Na apreciação de um leigo que se procura informar é no mínimo temerário afirmar que Sand “demonstra bem”. E uma coisa é segura: o livro é o resultado de uma tendência frequente nas ciências sociais a tudo considerar “invenção” ou “fabricação” ou “construção”. Há quase de certeza um livro intitulado “A construção social dos gatos” e não me surpreenderia se algum dia aparecesse alguém a afirmar que fora Abel a matar Caim, e não o contrário.
A extinção – digamos, de uma vez por todas: destruição – de Israel enquanto Estado judaico conduziria ao completo massacre dos judeus israelitas e as bases mais do que precárias que Boaventura Sousa Santos sugere para justificar o fim de Israel e às quais confere uma aceitação acrítica não são bases para nada do que pretende. Na sua relação com a conclusão, parecem-me o puro produto de uma aberração intelectual e política. Dito isto, não pretendo de modo algum impedir Boaventura Sousa Santos de falar em nome dos “cidadãos do mundo”, o que ele efectivamente faz no último parágrafo do artigo, pouco depois de se referir aprovadoramente à repugnante comparação de Saramago de Israel ao espírito de Auschwitz: “Declarada a sua [do Estado de Israel] extinção, os cidadãos do mundo propõem…”.
E não só não pretendo censurar como me apetece até divulgar o facto. É sempre bom as pessoas saberem que há pessoas como Boaventura Sousa Santos que se acham incumbidas da missão de representar os “cidadãos do mundo”. Para se precaverem, é claro. Não vá alguém lembrar-se de as extinguir em nome do mundo.