A draft decision redigida pelo Juiz Samuel Alito marca um novo capítulo infame no âmbito da Suprema Corte Norte-Americana. Repõe-se o espírito da Constituição, a intenção dos Pais Fundadores e o princípio de separação estanque e montesquiana de poderes, consagrando-se, qual São Tomás, «a Deus o que é de Deus e a César o que é de César». Ganha a Justiça. Ganha o Direito. Ganha a sociedade norte-americana.

A consagração do poder de fiscalização da constitucionalidade norte-americana, consubstanciada no âmbito do caso Marbury v. Madison de 1803, marca uma influência transversal ao contexto histórico norte-americano e constata a importância do órgão judicial no âmbito do ordenamento jurídico dos Estados Unidos da América. O seu funcionamento, tingido por um conjunto de casos paradigmáticos como Plessy v. Ferguson ou Brown v. Board, caracteriza um princípio ativista que, dentro da sua especificidade e da sua peculiaridade, permite o estabelecimento de um Governo de juízes, denunciado por Roosevelt, em que «a Suprema Corte faz justiça sobre a Constituição, estabelecendo um governo de homens, ao invés de um governo de leis». Roe v. Wade era, nesse sentido, uma decisão atestadora deste princípio ingerente da Suprema Corte sobre as competências típicas do Legislador, com a utilização de um conjunto de subterfúgios subversivos com vista à consagração de um Direito que, não estando consagrado constitucionalmente, cabe, intencionalmente e segundo os princípios estabelecidos pelos Pais Fundadores, à esfera dos Estados.

A invocação, na decisão maioritária escrita pelo Juiz Blackmun, do direito constitucional à privacidade enquanto direito implícito à Due Process Clause presente na 14ª Emenda, conjugada com uma necessidade arbitrária de conjugar esse mesmo direito ao aborto com o interesse dos Estados em regular essa mesma instância1 apresenta-se fundamentalmente errada na sua génese, contrariando o espírito dessa mesma Emenda, relativo à proteção de um dado agente contra a intromissão abusiva e injustificada do Estado na vida privada e no plano jurídico e fundado em direitos «profundamente enraízados na História e na tradição da Nação» e «implícitos no conceito ordeiro (i.e. comum) de liberdade», e estabelecendo um limiar, de um trimestre, que extrapola as capacidades e a jurisdição da Corte. A própria evolução nesse campo, mesmo sem uma maioria clara conservadora em casos como Planned Parenthood v. Casey (1992) ou Whole Woman’s Health v. Hellerstedt (2016), mostra um estreitamento, ainda que pouco acentuado, dessa mesma defesa constitucional e jurídica do direito ao aborto, num cúmulo que corrigirá uma decisão histórica e fundamentalmente errada e que devolverá aos Estados o poder de decisão sobre um direito que, não estando exposto de forma expressa na Constituição, deve ser abordado numa lógica inerente a esse rol de direitos.

Se é certo que o espírito geral da Constituição norte-americana é o de concessão de direitos, também é certo que é o de luta contra a concentração excessiva de poderes no âmbito federal e de combate à ingerência de um dado poder em matéria da competência de outro. Ao regular o direito ao aborto, a Suprema Corte dos Estados Unidos substituiu-se, efetivamente, ao Legislador, pisando campos e terrenos que lhe estão tipicamente associados e tomando um papel que compete ao poder legislativo, com uma ligação confirmada pela tentativa democrata de aprovação de uma Abortion Bill marcada por um novo conflito político entre a ala moderada do Partido Democrata no Senado, liderada por Joe Manchin e Kyrsten Sinema, e a ala progressista, liderada pelo independente Bernie Sanders, Ossoff e Warren.

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A decisão do Juiz Alito é, portanto, o resultado de um consenso que, numa vertente de interpretação mais original, destaca a ausência da referência ao aborto no texto constitucional2, ao mesmo tempo que evidencia a arbitrariedade estabelecida pelo limite da viabilidade no âmbito dos dois trimestres3 e aquilo que considera ser um «exercício de poder judicial cru (i. e. raw)»4 (citando Byron White), rematando com a necessidade de «devolver a temática aos representantes eleitos pelo povo» como expressão e exigência da Constituição e do Estado de Direito.

Por fraturante que a temática do aborto seja, a matéria apresentada pela Suprema Corte no caso Dobbs v. Jackson Women’s Health Organization é de natureza eminentemente jurídica, devendo ser solucionada e abordada nesse terreno. É dessa divisão estanque que resulta uma separação saudável de poderes, assente na legitimidade técnica dos Justices norte-americanos enquanto guardiães da Constituição e na legitimidade democrática dos representantes eleitos ao Congresso, para, a dois tempos, oferecer uma resposta cabal e pacificadora da sociedade. É desta separação absoluta que resulta uma delimitação dos campos de ação de cada poder, mantendo-se a legítima exclusividade do legislador de consagrar o direito ao aborto (ou, para esse efeito, qualquer outro direito) em função da prerrogativa inerente ao Congresso, a ambas as Câmaras e ao seu poder de legislação.

De uma herança de supremas injustiças transversais e independentes, em Plessy v. Ferguson, em Gore v. Bush, e em Dred Scott v. Sanford, a Suprema Corte concretizou, na contemporaneidade, um desígnio de verdadeira Suprema Justiça, com a restituição da legitimidade e da liberdade dos Estados em matéria não-constitucionalmente regulada e com uma política de autocontenção que a confinou, deliberadamente e de forma justa, a um campo estritamente inerente ao Direito. Vence o Direito e a Justiça. Vence o funcionamento do ordenamento jurídico norte-americano. Vence o modelo montesquiano da estrita separação de poderes. Sai derrotado o Governo de Juízes fortemente denunciado por todos os lados da barricada política. Num contexto de uma Suprema Corte extremamente polarizada e de um conjunto de ações e decisões de partidarização da mais alta Corte do território norte-americano, das quais é expressão clara a não-confirmação deliberada de Merrick Garland no fim do mandado de Barack Obama, a decisão do Juiz Alito, pese embora a sua necessidade de confirmação por parte do restante coletivo de juízes, é, ou deveria ser, um passo em frente na reunificação e desideologização da Suprema Corte norte-americana. Desse movimento depende o bom funcionamento do ordenamento jurídico norte-americano. Desse movimento depende o bom funcionamento de toda a sociedade norte-americana.

1 «State criminal abortion laws, like those involved here, that except from criminality only a life-saving procedure on the mother’s behalf without regard to the stage of her pregnancy and other interests involved violate the Due Process Clause of the Fourteenth Amendment, which protects against state action the right to privacy, including a woman’s qualified right to terminate her pregnancy.»
2 «Even though the Constitution makes no mention of abortion, the Court held that it confers a broad right to obtain one»
3 «Under this scheme, each trimester of pregnancy was regulated differently, but the most critical line was drawn at roughly the end of the second trimester, which, at the time, corresponded to the point at which a fetus was thought to achieve “viability,” ic., the ability to survive outside the womb. Although the Court acknowledged that States had a legitimate interest in protecting “potential life,” it found that this interest could not justify any restriction on previability abortions. The Court did not explain the basis for this line, and even abortion supporters have found it hard to defend Roe’s reasoning.»
4 «As Justice Byron White aptly put it, the decision represented the «exercise of raw judicial power»