O grande alargamento de 2004 ao leste europeu, a grande crise de 2008 das dívidas soberanas e bancárias, os programas de austeridade da Troika, os procedimentos por défices excessivos, a saída do Reino Unido, a pandemia da Covid-19, a guerra na Ucrânia e os efeitos das sanções na economia e política europeia, a guerra no Médio Oriente e, agora, no final de 2024, as crises de governação política no diretório franco-alemão, esta acumulação de factos históricos recentes deixou à União Europeia uma herança pesada que, na prática, acentuou o conflito de interesses e legitimidades entre democracia global, democracia europeia e democracias domésticas. Não surpreende, portanto, que estejam em laboração vários paradoxos e contradições de difícil administração.
Agora que foram investidos os novos titulares das principais instituições europeias vale a pena passar em revista os principais paradoxos e contradições que marcaram o ritmo do processo de integração europeia, em especial, no período entre 2004 e 2024.
Em primeiro lugar, o paradoxo da centralidade do Estado e a sua incapacidade para reconfigurar a sociedade civil; paradoxalmente, a radicalização populista da política doméstica recupera o Estado central como se estivéssemos órfãos de Estado.
Em segundo lugar, o paradoxo geopolítico. A política europeia não gosta da geopolítica, porém, tudo aponta para o regresso em força da história, da geografia e dos territórios delimitados pelas fronteiras.
Em terceiro lugar, o paradoxo da repartição dos recursos. A maior parte dos recursos próprios da União é dirigida para a política interna, porém, dada a relevância da geopolítica futura, é quase certo que os impulsos mais fortes para a reforma da União Europeia virão do exterior. Este impulso exterior implica que haja um movimento de reforma fundamental em direção à política externa, de segurança e defesa (PESD) em todas as suas dimensões, onde se incluem os refugiados, a política de cooperação e ajuda ao desenvolvimento e, também, a política energética na sua aceção mais ampla. Em consequência, são necessários mais recursos orçamentais para a PESD.
Em quarto lugar, o paradoxo monetário-orçamental. Esta dimensão externa muito alargada tem fortes implicações e um reflexo na política interna europeia e, em particular, na reconfiguração da união económica e monetária (UEM). Em consequência, as regras orçamentais do semestre europeu (SE), do pacto de estabilidade e crescimento (PEC) e do tratado orçamental (TO) podem ser objeto de uma revisão de conjunto e dar lugar a um orçamento da zona euro e uma nova política orçamental.
Em quinto lugar, o paradoxo da legitimidade. Não podemos caminhar para um novo modelo de política orçamental e não ter um acréscimo equivalente de legitimidade política democrática. É aqui que se inscrevem as propostas do Presidente francês de um orçamento para a zona euro, preparado e validado por uma assembleia parlamentar da zona euro e conduzido por um ministro das finanças europeu. Estão em causa dois objetivos maiores: atribuir legitimidade democrática a uma assembleia parlamentar da zona euro e dar um passo na direção de uma verdadeira política orçamental que esteja em condições de interagir mais intensivamente com a política monetária do BCE e, nessa medida, possuir uma política económica da zona euro muito mais efetiva.
Em sexto lugar, o paradoxo da extraterritorialidade. Não podemos assistir, por um lado, à desterritorialização da política doméstica e, por outro, permitir que se formem efeitos externos negativos derivados de uma extraterritorialidade europeia. Neste sentido, a criação de uma procuradoria europeia em especial para a criminalidade financeira é um bom sinal, conjuntamente com legislação europeia em matéria de offshores, de combate à evasão e fraude fiscais e mais e melhor harmonização fiscal. É um sinal indiscutível de legitimidade democrática que o cidadão europeu saberá reconhecer.
Em sétimo lugar, o paradoxo da teoria do precedente a propósito do Brêxit. A União não pode permitir que, em vez de maior unidade política interna, o BREXIT se converta em um risco de fracturação política alargada a outros países, em virtude do que poderíamos designar como a teoria do precedente, isto é, a escolha deliberada de uma linha dura de negociação apenas com o intuito de impedir ou condicionar novos pedidos de saída. Se tal acontecer será sempre um mau princípio de negociação.
Em oitavo lugar, o paradoxo das várias velocidades. A União não pode permitir que o reforço da zona euro, através de uma cooperação reforçada consentida pelos tratados, esteja na origem de uma divisão política grave, em virtude da aplicação da teoria da Europa a várias velocidades, o que pode ser entendido pelos países do leste europeu e em especial o grupo de Visegrado como uma aplicação discriminatória da teoria dos clubes. Por isso, seria preferível uma via de integração diferenciada e inclusiva de acordo com o ritmo e a vontade própria de cada Estado-membro.
Em nono lugar, o paradoxo das revisões hors-traités. A União não pode permitir que sucessivas revisões em áreas fundamentais sejam realizadas fora dos tratados, no plano intergovernamental, e contrariem, dessa forma, a legitimidade democrática das instituições europeias que assim perdem, a confiança dos cidadãos europeus.
Finalmente, o paradoxo da governação algorítmica. A União não pode permitir que a governança algorítmica (Sadin, 2015), por via de regulamentos e procedimentos automáticos e aplicativos inteligentes tome, progressivamente, o lugar da deliberação política e do processo legislativo, no caminho de uma certa integração furtiva.
Em todos estas manifestações paradoxais e contraditórias, reconhecemos o conflito de interesses e legitimidades entre democracia global, democracia europeia e democracias domésticas, elas próprias em dificuldades quando se trata de aprofundar as autonomias regionais e locais e todos os processos correlativos de subsidiariedade e descentralização político-administrativa. Estas manifestações mostram-nos, ainda, o modo como se aprofunda a chamada extraterritorialidade e/ou desterritorialização do processo político de integração europeia.
De facto, um dos grandes paradoxos do nosso tempo é a extraterritorialidade do mercado global contraposta à domesticidade da democracia nacional e, em consequência, o abismo extraterritorial que se abre à nossa frente. Cabe à União Europeia um contributo fundamental para a redução deste abismo extraterritorial e desta desigualdade estrutural e tanto mais quanto não temos um governo mundial e um multilateralismo acreditado que feche ou reduza esse abismo extraterritorial.
Nesta longa batalha entre o mercado global, a democracia doméstica e a democracia europeia, a desterritorialização é o outro lado da globalização. O domínio extraterritorial é a grande praça-forte do capitalismo transnacional que tudo fará para impedir a sua internalização, institucionalização e regulação, já para não falar do seu combate aos projetos políticos regulatórios como a União Europeia. O domínio extraterritorial é o campo privilegiado da corrupção, da evasão, do branqueamento de capitais e, de uma maneira geral, de todos os comportamentos de free raider e moral hazard. Neste sentido, a desterritorialização e a extraterritorialidade convertem-se não apenas nos principais adversários do velho Estado-nação, mas, também, constituem para a União Europeia um enorme desafio no século XXI, onde se contam muitas outras extraterritorialidades como o cibercrime e a economia de guerra, entre outros exemplos.
No atual contexto, de crise e renovação das instituições para 2025, eis a pergunta que se impõe: vamos continuar a construir uma Europa de características federais pela porta das traseiras através de tratados intergovernamentais que o diretório bicéfalo da União autoriza e consente de acordo com as suas conveniências, vamos aprofundar uma Europa Unionista dos pequenos passos e debater no espaço público comunitário as possibilidades de uma governação policêntrica e multiníveis, focada nos bens comuns da União ou vamos ceder à balcanização da política europeia e retroceder para uma Europa Intergovernamental onde vigora o primado da geopolítica (Covas, 2016, 2019, 2024)?
Depois da entrada em vigor do Tratado de Lisboa (2009), acentuou-se o hibridismo do sistema interinstitucional europeu que passou a contar com várias cabeças ou presidências: do Conselho Europeu, presidido por um presidente eleito por dois anos e meio, renovável, do Conselho de Ministros dos Negócios Estrangeiros presidido pela Alta Representante para a política externa, dos Conselhos de Ministros sectoriais presididos por presidentes rotativos de acordo com as presidências semestrais da União e no quadro do trio das presidências e, finalmente, o Conselho da Zona Euro ou Euro Grupo. Parece, agora, óbvio que o antigo Conselho dos Assuntos Gerais (CAG) perdeu importância relativa para o Conselho Europeu e que o Conselho de Economia e Finanças (ECOFIN) perdeu algum protagonismo para o Conselho da Zona Euro (19 membros).
No conjunto, a relação de poderes interinstitucional confirma uma tendência anterior e que o tratado de Lisboa não alterou substancialmente, a saber, a supremacia das instituições intergovernamentais expressa nos vários Conselhos, não obstante o reforço do Parlamento Europeu e a diminuição relativa do peso da Comissão Europeia. Mesmo o Parlamento Europeu, se a codecisão legislativa e os poderes orçamentais alargados são uma resposta ao défice democrático europeu, a sua iniciativa legislativa continua bastante limitada e o seu poder orçamental muito dependente das contribuições nacionais e dos chamados recursos complementares. De resto, registe-se a perda de importância do Conselho dos Assuntos Gerais (ministros dos negócios estrangeiros), é agora o Conselho Europeu que chama a si a definição política da Agenda Europeia.
Chegados aqui, e face à proeminência dos três Conselhos (Conselho Europeu, Conselho de Ministros e Conselho do Euro Grupo), regressa a velha questão das relações entre o método comunitário e o método intergovernamental. Na relação entre os dois métodos é fundamental perceber a evolução do papel da Comissão Europeia e avaliar até que ponto a sua legitimidade funcional em torno dos vários interesses comuns é condição necessária e suficiente para assentar a sua missão. Com efeito, se, por um lado, emerge a proeminência dos três conselhos no sentido intergovernamental, por outro, o Conselho Europeu, por maioria qualificada, propõe ao Parlamento um candidato à função de presidente da Comissão que o Parlamente investe por maioria dos membros que o compõem. Nesta aparente contradição e no processo aberto e contínuo de democratização do projeto europeu haverá um momento em que será pertinente discutir a distinção entre uma administração comunitária (unionista), uma comissão executiva (intergovernamental) e um executivo europeu (federal). Não há dúvida de que o objeto politicamente não identificado e o hibridismo metodológico que caracteriza a União Europeia continuarão a dar, ainda, muito trabalho aos politólogos
Nota Final
Neste momento a interdependência multiníveis é tão intensa que não há relação direta e previsível entre a estrutura e o resultado e o mais relevante é, mesmo, a competência para lidar com o processo e o procedimento da negociação interinstitucional. Neste sentido, é meu entendimento que a União Europeia deverá rever o seu governing atual, assumindo as funções de high politics ao centro e remetendo as funções de low politics à periferia, para os Estados, as regiões e as cidades, que, em conjunto, contêm um imenso potencial colaborativo e federativo ainda por explorar. Todavia, a única certeza neste momento é que a pressão internacional (os efeitos das guerras) e a pressão doméstica (os partidos populistas e radicais) irão determinar uma política europeia que resiste a propor reformas políticas de fundo, que aumenta a relutância de mais estados-membros e que conhecerá uma governação multiníveis algo atribulada, pois tem à sua frente uma década marcada por grandes transições cuja relevância já está parcialmente refletida nas principais reformas empreendidas pela União Europeia, a saber, o pacto ecológico europeu, o plano de ação digital, o pacto das migrações, o pacto social, a regulamentação da inteligência artificial, a estratégia europeia de segurança e defesa. As grandes transições desta década não seguirão, muito provavelmente, um guião bem estabelecido e este facto relevante mina a segurança da política das administrações e a estabilidade institucional dos incumbentes respetivos. Tudo parece estar em causa e nunca como agora as reformas multiníveis da governança europeia e do Estado-administração foram tão necessárias para o bem-estar dos cidadãos e a estabilidade dos valores europeus.