“Um leão costumava rondar um campo que quatro bois frequentavam. Muitas vezes tentou atacá-los; mas sempre que chegava perto eles viravam as caudas uns para os outros e assim, qualquer que fosse o lado pelo qual o leão se aproximava, teria de enfrentar os cornos de um dos bois. Todavia, um dia os bois zangaram-se, e cada um foi pastar sozinho para o seu canto. Então o leão atacou um de cada vez e rapidamente acabou com os quatro.” (Esopo, séc. VI a. C.)
Atualmente, o culto da individualidade é cada vez mais comum. Muitas vezes, sem nos apercebermos, somos levados a privilegiar o nosso ‘Eu’ e a procurar ser cada vez mais rentáveis. Numa sociedade que se tornou cada vez mais insegura, o culto do ‘Eu’ é um imperativo e o “amor próprio” uma necessidade. As pessoas confundem amor próprio com sabedoria, porque, segundo essa crença, quem é detentor de amor próprio não passa por ingénuo e abusado. Embora possa achar algo protetor, é apenas uma verdade parcial e talvez perigosa. Visto que a verdadeira imagem da sabedoria não passa por um excessivo amor próprio, pois esse pode disfarçar também as nossas limitações e inflacionar a nossa própria visão. A sabedoria passa por um profundo conhecimento pessoal, nomeadamente das nossas limitações. No entanto, em pleno século XXI, as pessoas não são educadas para isso.
Aliás, atualmente, as pessoas não são propriamente educadas; são treinadas. Tudo começa nas próprias escolas, que ainda não superaram o modelo fabril de Chicago, onde os futuros operários estão distribuídos em linha nas suas carteiras, e a campainha alterna os ciclos pavlovianos entre prazer e treino. E se repararem, as aulas e o recreio parecem mundos completamente diferentes. Não porque eles marquem ritmos distintos, mas porque os jovens aliviam o tédio e a monotonia das aulas através do exagero e da espontaneidade. É o grito do Ipiranga contra o treino constante, no entanto torna-se cada vez mais cinzento, até ter sido completamente vencido.
Voltando ao treino das pessoas, este prevalece segundo os interesses corporativos, ou seja, a base do treino das pessoas reúne os mesmos critérios pelo qual gerimos as empresas. Essa gestão é feita com base no investimento, retorno, rentabilidade de tempo e outros recursos. O problema é que gerimos a vida pessoal da mesma forma que as más empresas gerem estes critérios. Somos iludidos pelos nossos acionistas (progenitores), que se investirmos academicamente, iremos ter um retorno imediato. Quando a ilusão cai por terra, focamos todo o nosso tempo naquilo que presumivelmente gera recursos e estatuto. O próprio prazer, o lazer, a diversão e o convívio é completamente controlado com base nas mesmas regras de otimização de resultados, microgestão de tempo, gestão de pessoas, planeamento estratégico, avaliação permanente, benchmarking, empowerment, etc.
Em certo momento, a individualidade da pessoa é suprimida em deterioramento de uma persona cuidadosamente construída, visando rentabilizar a sua imagem. Hoje em dia somos treinados a transformarmo-nos no ativo mais valioso das nossas vidas. Por isso colecionamos seguidores em vez de pessoas, pois a rentabilidade está na forma como conseguimos instrumentalizar esses ativos (seguidores). Apenas precisamos deles para isso, já que de resto temos a tecnologia cada vez mais evoluída para suportar o nosso amor próprio. Câmaras que aperfeiçoam a nossa imagem e envolvem a nossa face num efeito bokeh, porque mais nada interessa, a não ser o nosso brilho.
Somos constantemente incentivados à optimização e essa eficiência gera produção. A produção leva à optimização, que gera egocentrismo, ou então ficamos para trás na pior das ‘nossas’ versões. Tal como uma pescadinha de rabo na boca. Contudo essas versões que construímos nunca são verdadeiramente nossas. São no fundo aquilo que nos treinam a ser. Tornamo-nos nessa mula que corre atrás da cenoura, na qual os antolhos limitam a nossa visão. Reproduzimos guiões dos media e clichês da tendência.
Esta produção gera cansaço, o cansaço conduz ao esgotamento e o esgotamento ao vazio existencial. Não existe pessoa no vazio da existência. Então somos engolidos pela sombra psicológica. É importante realçar que, no palco da nossa vida, não existe ninguém que seja capaz de nos substituir a não ser nós mesmos. Mas isso não quer dizer que devemos tratar os outros como números. Acredito que nem as empresas deveriam tratar as pessoas como números.
Eram os anos 70 e Bob Chapman tinha comprado mais uma empresa que estava em risco de falência. Quando chegou à HayssenSandiacre encontrou uma típica fábrica, onde os funcionários aguardavam as ordens através do toque estridente de uma campainha. Ao toque da campainha, o espírito abandonava o corpo de cada um dos funcionários e, como autómatas especializados, operavam o seu trabalho. A campainha era a novamente a rainha que ditava o compasso para os intervalos, para a casa de banho, para o café, e etc.
Um dia, durante a manhã, Chapman teve a oportunidade de olhar os seus homens, e verificou como estes conversavam alegremente antes da campainha soar. Quando esta tocava e marcava os 10 minutos para o trabalho, as suas expressões faciais mudavam drasticamente. Chapman aproveitou a oportunidade de receber um dos seus trabalhadores mais antigos na empresa, que teria regressado de uma viagem onde tinha sido o capataz de uma obra, para elaborar algumas perguntas. Chapman foi muito objetivo e perguntou quais eram os pontos fracos da empresa. O seu colaborador estava hesitante sobre dar o seu ponto de vista, mas Chapman descansou-o dizendo “Asseguro-lhe que se tiver algum problema com o que me disser aqui hoje, só tem de me ligar”. Então ele começou por dizer “O Sr. Chapman parece que confia mais em mim quando estou fora do que quando estou aqui. Tenho outra liberdade lá fora do que aqui. Mal pousei o pé na realidade da fábrica, senti-me controlado, voltei a usar o relógio de ponto e não fiz nada disso lá fora. Entro pela mesma porta dos engenheiros, contabilistas, gestores e outro pessoal do escritório, mas eles viram à esquerda para o escritório e eu para a fábrica onde somos tratados de forma completamente diferente”. Dando a entender que uns ascendiam a purgatório e outros caminhavam para o inferno. Continuou “Confia neles para decidir quando querem ir buscar um refrigerante, ou uma chávena de café, fazer uma pausa ou até ligar para um familiar, enquanto eu espero por uma campainha”.
Foi nesse momento que Chapman mandou tirar todas as campainhas, relógio de ponto e cedeu as chaves das caixas de ferramentas aos operários. Disponibilizou telefones para todos os colaboradores e retirou as cabines telefónicas, para que qualquer pessoa pudesse usar. Num gesto de genuína confiança e entrega, alterava a cultura organizacional até um ponto inimaginável. Através deste gesto de bondade, inspirou uma genuína melhoria nas relações humanas e curiosamente na entreajuda. A empresa aumentou uma receita de 55 milhões para 95 milhões. Tal como Simon Sinek admite, isto acontece porque quando pedimos aos nossos colaboradores, não apenas as suas mãos para fazer o trabalho, mas inspiramos a sua cooperação, confiança e lealdade; todos lutamos para a mesma causa. Segundo Sinek “devemos tratar as pessoas como família e não meramente como colaboradores. Sacrificar os números para salvar as pessoas e não sacrificar as pessoas para salvar os números.”
É por isso que admiro certos empresários como Chapman, ou exemplos portugueses como Miguel Milhão e Marco Galinha. São empresários que sabem que para existir inovação tem de existir experimentação, erro e perda. Existem empresas a gastar tempo e milhões na melhoria de um produto. As melhores empresas investem na criação de um contexto de cooperação e confiança. Esse contexto só é possível criar com margem para o erro.
A 3M é uma das maiores empresas mundiais a nível de reputação, inovação e valor de mercado. Um dia Spancer Silver, cientista e investigador da 3M, estava a trabalhar no laboratório da empresa de forma a desenvolver um adesivo muito resistente. Contudo, não foi bem-sucedido e criou um adesivo muito fraco. Todavia, ao contrário das empresas que punem o erro, a 3M foi capaz de criar uma cultura organizacional distinta, onde as pessoas partilham e confiam as suas adversidades. Foi isso que Spancer fez com os seus colegas, na tentativa de encontrarem uma solução para aquela criação. Um dia, outro investigador de 3M, Art Fry, estava no coro da sua igreja e sentia-se frustrado porque não conseguia manter o marcador da página no seu devido lugar. Foi aí que se lembrou da criação do seu colega e pensou colocar um pouco desse adesivo no papel, surgindo assim o Post-it. Maior parte das criações da 3M são parcerias e algumas acontecem por acaso, por causa da sua cultura que privilegia a partilha e a confiança.
Tal como diz Sinek “a confiança é como a lubrificação. Reduz a fricção e cria condições muito mais conducentes ao desempenho”. Eu acrescento que a confiança gera relações genuínas e essas relações genuínas geram redes de suporte e essas redes de suporte geram alívio existencial. Além do alívio existencial, aumentam a resposta criativa da pessoa, pois diminuem a entropia interna. Sinek ensina que “quando as pessoas têm de gerir perigos vindos de dentro da organização, a própria organização se torna menos capaz de enfrentar os perigos vindos do exterior”.
Hoje somos como os bois de Esopo. E que tal se tornarmos as empresas mais humanas e as pessoas menos empresariais?