Há uns anos, uma amiga que me deve conhecer bem ofereceu-me uma descomunal borracha verde onde se pode ler: For really BIG mistakes. É raro, mas acontece: a prenda certa para a pessoa certa. Se for contar as vezes em que mentalmente tentei usar o objecto em questão para eliminar do mundo, ou, pelo menos, da minha cabeça, gestos absurdos e palavras erradas, as danadas das palavras!, perco-me, de certeza. O problema é que esta muito promissora e verdinha lâmpada de Aladino do esquecimento não funciona. Como lembrava um grego antigo, se há coisa que nem os Deuses conseguem fazer é que o que aconteceu não tenha acontecido. O melhor que se pode fazer é pedir desculpa – não é grande coisa, mas não se inventou ainda nada melhor – e esperar que uma generosa dose de perdão nos seja formalmente comunicada e o nosso espírito volte à elevada condição que merece. Mas, por mais que essa louvável virtude do perdão seja uma ou outra vez praticada, uma coisa, no fim, é certa: debaixo da terra, nos cemitérios, sob graves lápides proclamando amor e respeito, os pensamentos dos horizontais habitantes não devem, na maioria dos casos, ser coisa linda de se ver.

Estas profundas reflexões têm uma razão de ser. Um livro, um clássico nesta matéria, publicado em 1915 por um poeta americano, Edgar Lee Masters. Chama-se Spoon River Anthology. Deve ser o livro de poesia que mais vezes ofereci, e tenho-me apanhado, por ridículas razões que bem compreendo, a relê-lo nestes dias. Em parte inspirado pela chamada Antologia Palatina, uma compilação de epigramas gregos realizada no século X da nossa era, em parte pelos Monólogos Dramáticos de Robert Browning, Edgar Lee Masters imaginou uma terrazinha americana, Spoon River, e imaginou-a de maneira singular: a partir dos pensamentos, sob forma de quase-epigramas, dos ocupantes do cemitério local, localizado numa colina à beira da cidade. É possível reconstruir a vida em Spoon River a partir desses epigramas, porque cada morto fala de alguns outros, e a leitura da totalidade dos poemas permite-nos ter uma ideia do que era a cidade viva. O macrocosmo é obtido a partir do microcosmo.

Ora, a pacata terrinha, como as pacatas terrinhas todas, não era lugar de bons sentimentos em dose excessiva. É o mínimo que se pode dizer. Edgar Lee Masters era advogado, o que lhe deve ter ajudado no empreendimento. De facto, vemos de tudo nestas histórias cruzadas. Maridos e mulheres que se traíram, se detestaram, se humilharam e às vezes se mataram. Terríveis desilusões amorosas. Ambições literárias frustradas. Vigarices gigantescas, como a do banqueiro local. Ódios impenitentes. E por aí adiante. Muita, muita raiva.

Há mortos que se queixam de outros terem ficado mais próximos do túmulo de personagens eminentes, e até da bela vegetação que rodeia outros túmulos que não o seu. Há contingência para além da vida: o bêbado da terra pode ficar enterrado à beira de um banqueiro. Um deles, que passou o tempo da sua existência vertical a fechar saloons e a combater o vício, e que era um hipócrita da pior espécie, lamenta-se pelo facto de um jovem casalinho, ele e ela filhos de pessoas que conheceu, ter escolhido o seu túmulo para executar nocturnamente as suas agilidades amorosas. Um dos mortos irrita-se por o seu epitáfio ter sido escrito por um tolo pomposo que cita Shakespeare.

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A história de Spoon River só se pode perceber a partir do cruzamento dos vários pontos de vista. (Nada nos impede de imaginar outros cruzamentos, para além daqueles que Edgar Lee Masters imaginou. Já dei por mim várias vezes a imaginar alguns.) Cada morto tem uma perspectiva própria sobre as coisas, e expressa-a com grande franqueza. Um aparente admirador em vida do mayor de Spoon River (o tal que se irritava com o casalinho) não contém, depois da morte, o seu mais profundo desprezo por ele. Um outro denuncia um colega de cemitério (o bêbado que ficou enterrado ao lado do banqueiro) por ter votado pelo encerramento dos saloons apenas pela razão de não o deixarem lá entrar.

O génio de Edgar Lee Masters manifesta-se, entre outras coisas, na variedade estilística subtil, necessária para exprimir a individualidade de cada personagem. Mas há também, é claro, uma efectiva (não apenas programática) unidade do conjunto, uma unidade de tom, que faz lembrar o final de The Dead de Joyce, quando, de repente, Gabriel Conroy descobre que o verdadeiro amor da sua mulher Gretta tinha sido um rapaz que morrera há muito, muito novo. Como se tudo, num instante, ficasse definitivamente fixado para a eternidade, sem possibilidade de alteração alguma. (O grande e último filme de John Huston – não conheço nenhum outro realizador que tenha começado e acabado com filmes tão bons, The Maltese Falcon e The Dead – não dá certamente tão bem isto como a prosa de Joyce.)

No fundo, todos buscaram sentido para as suas vidas, apesar de, como diz um deles, a busca do sentido poder acabar na loucura. Mas a loucura é preferível à “tortura da inquietação e do vago desejo”, a tortura de “um barco desejando o mar e, no entanto, temeroso”. O “ogre Vida” é cruel. Que o diga aquele, desprezado pelo amor, que descobriu “que apenas a morte o trataria como igual aos outros homens”, o faria “sentir-se um homem”.

O que resulta de todo o livro é uma mistura de piedade e irrisão. Uma coisa sem a outra seria um falhanço. As duas juntas são uma vitória poética. E uma vitória poética que, se estivermos para aí virados, nos põe a pensar no epitáfio que para nós desejaríamos. O autor da introdução à edição que tenho de Spoon River refere um, num cemitério de Key West: “Eu bem vos disse que estava doente”. Não é mau. Enfim, matéria para reflectir.