As ilusões são erros de perceção que acontecem, mais frequentemente do que se julga, na nossa observação do mundo. Não são alucinações, perceções erradas de um estímulo sensorial que não existe, nem alterações do pensamento como os delírios, crenças ou ideias sem suporte real. Em política há tudo isto e também há quem minta sem rebuço. Mas são as ilusões que agora me interessam, já que elas podem levar à génese de afirmações que se podem tornar “delirantes” e persistentes. Incluo nestas “ilusões”, ou se quiserem podemos antes chamar-lhes mitos, afirmações que se fazem por falta de acesso aos factos ou ao contraditório, muitas vezes porque quem governa só tem acesso à parte da informação que lhe mostram ou que quer ver. E de tanto assumir que o erro é a verdade, o governante “delira” no mundo em que se fecha, acreditando nas falsidades que vai repetindo, acabando um dia a “alucinar” vacas que voam. Vamos ver algumas das ilusões mais frequentes sobre política de saúde. Repito, necessariamente, coisas que ando a escrever há anos e que tenho de ir recapitulando. São vinte ilusões que repetidamente oiço. Poderiam ser mais, mas estas são as que me pareceram mais importantes. Ou as de que me lembrei. A ordem é aleatória e a adição comutativa.
- O PROBLEMA DO SNS É DE GESTÃO E NÃO DE FINANCIAMENTO – Não se pode gerir sem o financiamento adequado e o SNS tem sido e ainda é subfinanciado. É certo que o Orçamento de Estado tem tido previstos, ao longo dos últimos anos, aumentos significativos para a Saúde, mas o dinheiro gasto é sempre muito inferior ao orçamentado. Não há, sobretudo, investimento. Faltam ferramentas importantes para a gestão integrada dos circuitos dos doentes, as estruturas físicas precisam de ser aumentadas, reparadas e mantidas. Estamos longe de ter todos os recursos humanos necessários. Há uma avaliação de inovação tecnológica ainda muito imperfeita, lenta e limitada. Logo, o SNS precisa de mais dinheiro que terá de ser sabiamente alocado. Para que possa haver poupança no futuro, há a necessidade de muito investimento. E depois, havendo estruturas e equipas novas, elas terão de ser sustentáveis e sem dinheiro não há sustentabilidade.
- PAGAR POR DESEMPENHO, “PAY FOR PERFORMANCE”, RESOLVE A QUESTÃO SALARIAL DOS PROFISSIONAIS E FIXA-OS NO SNS – Pagar por desempenho é um modelo muito difícil numa estrutura onde os recursos são alocados, nomeadamente o acesso a atos médicos, sem ser por escolha do cliente. O que é desempenho? Muitos atos, independentemente do resultado? E quem avalia a satisfação do utente? Incentivos? Talvez haja lugar a poder pagar mais a quem trabalha mais, mas a questão será sempre a quem trabalha mais e melhor. Acima de tudo, num sistema onde a prestação é assegurada por uma entidade pública, sem competição no mesmo modelo de financiamento que não depende dos pagamentos feitos pelos clientes, incentivos justificam-se pontualmente e não podem substituir a base salarial que mantém o pessoal. Pagamentos por ato, ou incentivos similares, obrigam a um sistema de controlo e verificação da qualidade de cuidados e pode promover a seleção negativa de casos mais complexos, a chamada desnatação.
- HÁ CAMAS SUFICIENTES NO SNS – Não há. O número de camas disponíveis para cuidados hospitalares tem vindo a diminuir. Também há falta de lugares na Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados, em especial para doentes do foro da saúde mental e pediatria. Os apoios domiciliários não compensam a falta de camas nos hospitais. A complexidade de algumas intervenções e tratamentos têm obrigado a que haja camas hospitalares disponíveis, ainda que para internamentos de curta duração. O “internamento domiciliário” pode mitigar a falta de camas, mas terão sempre de existir vagas para internar complicações, mesmo que sejam camas desocupadas. Não há estruturas para cuidados paliativos em quantidade suficiente e as que existem, erradamente, estão apenas votadas ao tratamento de doentes terminais. Note-se que a existência de cuidados domiciliários de doentes que tradicionalmente deveriam estar internados obriga a que haja serviço de emergência permanentemente disponível na área de residência.
- O ENVELHECIMENTO POPULACIONAL É A PRINCIPAL AMEAÇA À SUSTENTABILIDADE DO SNS – Não é. O envelhecimento populacional aumenta a prevalência de doenças crónicas e a incidência de outras, como o cancro. Mas o principal motor do crescimento da despesa em saúde é a inovação tecnológica, desproporcionadamente cara para os benefícios reais que acarreta. Em Portugal, temos o problema de conjugar uma longevidade crescente, o que é bom, com perda de anos de vida com qualidade e sem doença, o que é mau.
- TEMOS ACESSO ADEQUADO À INOVAÇÃO TERAPÊUTICA – É uma meia verdade. Temos acesso a alguma inovação terapêutica, mas nem sempre à mais necessária. Não temos uma visão estratégica de médio e longo prazo sobre quais as inovações que o SNS deve acomodar. Há atrasos nas avaliações e o processo de avaliação está cheio de redundâncias. Há desigualdades no acesso à inovação terapêutica dentro do SNS. Não se usam eficazmente as redes de referenciação.
- HÁ MÉDICOS E ENFERMEIROS SUFICIENTES EM PORTUGAL — Não há. Sobre a falta de Médicos no SNS está quase tudo dito. E a verdade é que a parte privada do sistema de saúde também, algumas vezes e de forma crescente, já não dá resposta em tempos aceitáveis. Não há uma correta utilização das competências de cada grupo das profissões da saúde. Não há partilha de intervenções nas funções. Não há equipas multidisciplinares de forma transversal em todo o SNS e a luta pela “autonomia” profissional e “pelouros” artificiais tem levado a constrangimentos. Há uma desproporção na relação entre números de médicos e enfermeiros, a favor dos médicos. Agora, com a falta de médicos talvez já esteja mais equilibrado. Mas há camas e outros meios encerrados por falta de enfermeiros.
- PARA LÁ DOS ANTERIORES, NÃO PRECISAMOS DE MAIS PROFISSÕES NA SAÚDE — Não é verdade. Os cuidados de saúde exercem-se de forma sequencial, multidisciplinar e pluriprofissional. Faltam profissionais e falta coordenação entre os atores, até porque estes estão normalmente mais preocupados em defender territórios e afirmar independência face à necessidade de haver chefias integradoras e motivadoras.
- ASSEGURANDO CUIDADOS PRIMÁRIOS PARA TODOS, RESOLVEM-SE AS DIFILCULDADES DE ACESSO A CUIDADOS NO SNS – Os cuidados primários devem ser a porta de entrada no sistema de saúde para a maioria, talvez a totalidade, de todas as pessoas. Mas há problemas de acesso que ultrapassam a esfera de intervenção dos cuidados primários, nomeadamente no acesso a especialidades hospitalares, cuidados e meios de diagnóstico complementares. Falta-nos a estruturação de caminhos clínicos, pré, intra e pós-hospitalares. A cadeia está sistematicamente interrompida, com atrasos clinicamente inaceitáveis, até porque o tão propalado “funcionamento em rede” do SNS não existe. Dependemos ainda muito de contactos pessoais, telemóveis particulares e emails privados. Por mais Médicos de Família que acrescentem ao SNS, sem resolver as questões de comunicação, nada feito.
- DISSUADIR OS UTILIZADORES DE USAR CUIDADOS, POR OUTRA VIA QUE NÃO SEJA A DA INCOMPORTABILIDADE FINANCEIRA, RESULTA — Nada de mais falso. Havendo cuidados baratos, idealmente gratuitos no ponto de contacto, as pessoas vão procurá-los. Ainda bem que é assim. Não é ao prestador que compete a definição da necessidade da procura pelo utilizar. O prestador identifica e avalia a necessidade e dá uma resposta adequada em função dessa necessidade. Pode ser uma palavra ou um medicamento. Ou o encaminhamento para outro profissional. Mas a disponibilidade de prestadores, num sistema universal, é a chave do sucesso. Logo, quando o sistema gratuito no ponto de contacto deixa de existir, apenas os que não podem pagar são dissuadidos de procurar quem lhes acuda. Não vale a pena acreditar que, sem penalização financeira, as pessoas vão deixar de ir a serviços de urgência se não houver alternativa. E não é concebível, ética e tecnicamente, a recusa de atendimento a quem não tem mais onde ir.
- O TELEFONE E A CONSULTA ON LINE SÃO SOLUÇÃO UNIVERSAL – Não são. Ajudam. Resolvem problemas em algumas especialidades. Mas não dispensam a consulta Médica ou de Enfermagem com observação direta. São um meio complementar de acesso, nada mais do que isso.
- RESOLVENDO A CRISE DE ACESSO E DISPONIBILIDADE DE SERVIÇOS DE URGÊNCIA FICA TUDO BEM – Completamente falso. Há de haver sempre quem precise de cuidados urgentes/emergentes na ótica do utilizador. Logo, é fundamental que a rede de emergência e urgência retome os níveis de funcionamento e atendimento de 2015. Mas só resolvendo os problemas de acesso a cuidados de continuidade, nos centros de saúde e hospitais, não apenas nos primeiros, se poderá resolver a crise de falta de resposta nas urgências.
- REORGANIZAR OS DIPLOMAS QUE REGULAM A ESTRUTURA ADMINISTRATIVA É UMA REFORMA — Não é. A organização administrativa da rede de cuidados é essencial para o funcionamento do SNS. Mas a reforma que se aguarda envolve muito mais. Passará por rever o modelo de financiamento do SNS, a livre escolha dos cidadãos e a especialização da rede pública em torno daquilo que os privados não poderão prover, por incomportabilidade financeira face ao custo das intervenções ou por situação geográfica e demográfica que não constitua incentivo para a fixação de um prestador privado. Note-se que o setor social é privado, pese embora não esteja vocacionado para a obtenção de lucro com a sua atividade ou, melhor dizendo, com a distribuição do lucro entre os proprietários da empresa prestadora de cuidados de saúde. A reforma envolve repensar o papel dos impostos, subsistemas, mutualidades e seguros privados no pagamento de cuidados de saúde. A reforma tem de resultar na melhoria global da saúde em Portugal e o fim da dupla tributação em curso. Quem ganha o suficiente para pagar impostos acaba a contratar um subsistema ou um seguro, porque o SNS não responde em tempo útil.
- OS PRIVADOS AMEÇAM O SNS – Uma ficção, um mito corrente. Os privados têm crescido na razão direta da falência da rede do SNS. Preenchem o vazio do desespero de quem espera. Mas não são ameaça. Podem ser aproveitados para libertar o SNS para as intervenções em que o serviço público é insubstituível. Há espaço e necessidade para um sistema onde SNS e privados se complementem. A ameaça de desaparecimento do SNS que está previsto na Constituição e é o mecanismo mais importante de coesão social, está na forma errada como o Estado tem gerido o sistema.
- A SUBSTITUIÇÃO INTEGRAL DO SNS PELO SETOR PRIVADO RESOLVE OS PROBLEMAS DO SNS – Falso também. Não há possibilidade de substituir todo o SNS por um sistema privado apenas financiado por seguros públicos e/ou privados. Há problemas de distribuição populacional, até num País pequeno, de formação de profissionais, de resposta a emergências de saúde pública, de tecnologias de elevado custo para doenças menos frequentes e até de controlo de qualidade que exigem a presença de públicos e privados, como até nos EUA existe. Mas, a progressiva e inevitável contratação de serviços médicos ao setor privado implica uma estrutura de controlo de qualidade que tem custos associados e pode ser suscetível ao desperdício. Para já, o Estado não dispõe dos meios para fiscalizar e fiscalizar-se.
- MUDAR DE SISTEMA DE FINANCIAMENTO NO MODELO ATUAL, BASEADO EM SNS COMO PRESTADOR QUASE ÚNICO, PARA UM MODELO COM MAIS LIBERDADE DE ESCOLHA, SERIA PRIVATIZAR E PERDER ACESSO PARA OS MAIS POBRES – Falso. O modelo ideal seria complementar e supletivo. A questão será mesmo abrir os hospitais não públicos para a prestação de cuidados a todos os beneficiários do SNS, com preços justos. Um SNS mais eficaz e eficiente criará competição sobre os privados e o alargamento dos potenciais beneficiários pode permitir regulação e baixa de preços. Logo, o primeiro passo será voltar ao ponto 1 e financiar para melhorar a resposta pública, e colocar pressão competitiva sobre os privados.
- O SNS É GERAL – Não é e nunca poderá ser. Será uma aproximação, não mais do que isso, da generalidade ideal. O SNS, enquanto prestador ou contratante de cuidados, deve delimitar a esfera das intervenções que está disposto a pagar, com razão de custo-utilidade aceitável. Tem de ser capaz de responder às necessidades dos utentes de forma adequada, em tempo útil, pelo preço mais baixo. Só assim o sistema de saúde, não apenas o SNS, pode ser sustentável, o que é o mesmo que dizer, perene. A desregulação conduzirá a uma situação de “first come, first served”, e a uma exaustão de recursos que nem as companhias de seguros poderão aceitar. O mercado Português é pequeno e os riscos são elevados. Voltámos ao ponto da avaliação de tecnologia.
- AS PPP ERAM UM MAU NEGÓCIO — Foram um excelente negócio para o contribuinte. Mas cuidado nas avaliações superficiais porque o negócio foi bom para o Estado, muito mais barato do que custaria suportar o mesmo nível de atividade, porque havia operadores privados a suportarem os prejuízos acumulados. O Governo não desistiu formalmente das PPP na saúde. Apenas quis que os donos das PPP se mantivessem em atividade debaixo dos contratos em vigor, absolutamente leoninos, e as companhias que geriam os hospitais em PPP não quiseram continuar a perder dinheiro. O Estado foi preguiçoso, não fez trabalho de casa, não apresentou uma proposta de contrato quando o devia ter feito e houve quem decidisse abandonar a gestão de Hospitais em PPP. Hoje, estão todos pior, mais caros e menos eficientes.
- AS UNIDADES LOCAIS DE SAÚDE SÃO PANACEIA – Não são. É um modelo que nunca foi testado em Portugal de modo universal. As avaliações das que existem nunca foram muito favoráveis. O seu mapa atual foi martelado à pressa. As sinergias não estão garantidas. Os hospitais de maior diferenciação, de nível regional, não deveriam estar em ULS, no mesmo nível dos hospitais distritais. É um modelo interessante que deveria ter sido ensaiado na nova formulação, antes de ser generalizado. Esperemos que corra tudo bem.
- O SNS, SE NADA MUDAR E MUITO, É SUSTENTÁVEL – Naturalmente, não é. Precisa de financiamento per capita adequado e de um combate feroz ao desperdício. Combate à prescrição inadequada, às listas de espera que comprometem o resultado das intervenções terapêuticas, aos custos administrativos e à burocracia, à perda de informação, etc. Precisa de uma redução muito significativa da carga de doença de que resultará uma diminuição da mortalidade abaixo dos 70 anos e um aumento da esperança média de vida com saúde. Para tudo isto, necessita de políticas intersectoriais e interministeriais com apoio na Assembleia da República e da população em geral, com um combate feroz à desinformação e aos lóbis que lucram com a indução de doenças, como sejam a indústria do tabaco, das drogas, do álcool, do jogo e da manufatura de determinados produtos alimentares, para dar os exemplos mais significativos.
- O POVO É SERENO — Até ver, talvez seja. Mas está a mudar. Está, felizmente, mais exigente. E convém que seja ainda mais exigente no que à promoção da saúde e prevenção da doença disser respeito. Precisamos de uma população mais educada, com a denominada literacia em saúde, mas igualmente com maior disposição para reclamar e, dessa forma, que não se contente com serviços prestados e resultados abaixo do internacionalmente aceitável.