Tem sido notícia, desde a última quinta-feira, a forma como foi evitado um atentado que poderia ter consequências catastróficas na Universidade de Lisboa. E têm sido discutidos, quase até à exaustão, muitos aspectos relacionados com a pessoa que o terá perpetrado, o modo como teria planeado levá-lo a efeito e as circunstâncias tidas em consideração para que ele atingisse mais vítimas. É claro que, independentemente das opiniões dissonantes em relação à forma como o comunicou, estamos todos gratos à Polícia Judiciária pela maneira como o evitou. Por mais que, a propósito dum acontecimento desta dimensão, se tenha perguntado se estaríamos ou não diante dum acto de terrorismo. Se alguma da cobertura mediática não terá sido muito questionável. Se tudo isso não poderá, mais do que dissuadir, atrair outros comportamentos miméticos. E que perfil psicológico teria este rapaz para que tenha decidido levá-lo a cabo. Falou-se de um presumível diagnóstico de Síndrome de Asperger. Do modo como teria sido vítima de bullying. Ou do seu consumo de conteúdos relacionados com outros actos de grande violência. E da forma como poderia não distinguir o bem do mal. Voltando-se a referir o impacto da pandemia na saúde mental. E a forma como as quarentenas terão contribuído para que quem fosse doente mental tivesse ficado pior. E quem não era passasse a sê-lo.

Ora, eu acho legítimo que nos perguntemos todos o que pode fazer com que um rapaz de 18 anos vá de caloiro a presumível terrorista. E, por isso, que tentemos “esgravatar” nos sinais que possa, antes, ter dado, ou nos motivos que o possam ter levado a um comportamento tão grave e tão destrutivo. É verdade que, por vezes, a linha que separa informação e reality show fica ténue ou parece quase não existir e isso nem sempre nos ajuda a perceber os motivos que o terão levado até aqui. Mas fiquemo-nos pelo abstracto de algumas questões em torno da saúde mental e pelos argumentos, entretanto, trazidos por este episódio à discussão da violência.

Ao contrário daquilo que se escuta amiúde, todas as pessoas distinguem, no essencial  o bem do mal. É verdade que, a ser assim, nos poderemos perguntar porque é que pessoas que nos são próximas ou íntimas, às vezes, na ânsia de acharem que nos querem bem, nos magoam ou nos fazem mal. Porque parecem “perder” a sensibilidade para aquilo que se passa connosco e o seu olhar sobre nós tem muito pouco a ver com aquilo que somos. Porque estão tão “atulhadas” de ruído, dentro delas, que sentirem os outros em si, mesmo aqueles que lhes são mais íntimos, parece ter-se transformado numa “missão impossível”.  Por mais que haja mais outros motivos que o justifiquem, será importante reconhecer que por serem serem, acidentalmente, maus, irrefletidamente maus ou impulsivamente maus, isso não faz delas más pessoas. Até porque, devidamente alertados para o mal que fizeram, estarão disponíveis para o reconhecer, para o emendarem e, sobretudo, para não o repetirem. Por outras palavras, já todos fomos maus muitas vezes. Aliás, este tipo de maldade de que já fomos protagonistas será, mesmo, quem mais nos interpela para nos trazer à bondade. A dor que os nossos gestos pode provocar é indispensável para nos ajudar a ter uma consciência ética. Não só porque não nos aconchega magoar quem nos ama. Como, na verdade, porque alguém magoado por nós, por mais que não queira, nunca nos ama da forma como, sem essa dor, seria capaz de o fazer. Ou seja, mesmo as pequenas maldades fracturam, afastam e matam, por dentro. Aos bocadinhos. Porque o mal supõe uma dor muito grande provocada pela violência na qual ele assenta.

Mas quando falamos doutro tipo de violência estaremos a falar da promoção intencional, repetida e significativa de sofrimento no noutro. Sem remorsos, sem culpabilidade, sem vergonha  e sem reparação! Nestas circunstâncias, não há como não distinguir o bem do mal. A violência surge como uma forma de  vingar o sofrimento. Quanto maior ele é maior mais ela se torna maligna, generalizada e destrutiva. E mais a inveja que todos os outros despertam, pelo vida despoluída de sofrimento que parecem ter, serve para esconjurar a inveja. De forma a aniquilá-la num gesto e de forma a que a intimidação e o terror que desperta contrabalancem a ausência de compaixão, de respeito ou de admiração que alguém que se tornou mau foi sentindo. A violência e o ódio serão, de certa forma, a “máquina de lavar” do sofrimento. E resultam – sempre! – de perturbação ou de doença mental. É claro que não há estratos sociais que sejam mais vulneráveis a que exista violência. Embora, para a “mesma” exposição à violência, menos educação e mais iliteracia mais aumente as probabilidades da violência ser mais agida e menos psicológica. Sem que, com isso, deixe de ser violência.

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Evidentemente, compreender a forma como a violência se gera e se expande não pode servir nem para que condescendamos diante dela nem para a justificar. Até porque muitos outros adolescentes vítimas de bullying ou de outras formas de violência, não são, por inerência, igualmente violentos. Ou por muito que consumam videojogos violentos e vídeos (onde a violência está, também, demasiado presente), “só” isso não os tenha tornado, de forma excessivamente linear, violentos. Esses formatos de violência todos juntos contribuem para que se descompense de forma mais vertical, mais depressa. E mais acentuam a descompensação quanto, associado a eles, mais se está exposto a acontecimentos de vida muito tensos e muito difíceis; onde poderão estar experiências de extrema vulnerabilidade ou de humilhação, por exemplo. E, sobre tudo o resto, quanto mais frágil e frágil se é, em consequência de experiências familiares que se possa ter tido, quanto mais se forem abalando, de forma insidiosa, os alicerces duma personalidade capazes de mobilizar recursos de vida, e de encontrar nas experiências de dor a alavancagem indispensável para as transformar em factores e em oportunidades de crescimento.

Para além de mais, é também escorregadio que no Síndrome de Asperger se possa encontrar o motivo remoto que possa ter justificado um acto como aquele que se estaria a perpetrar. É verdade que em Portugal parece existir uma epidemia atípica de síndrome de Asperger que, em muitas circunstâncias, não corresponde ao perfil de personalidade de muitas crianças e adolescentes diagnosticados dessa forma.  É verdade, também que, até entre a comunidade universitária, haverá professores com perfis Asperger de personalidade que, todavia, não desembocam para indícios de violência desta gravidade. E é, também, verdade que, mesmo entre outras pessoas com perturbações mentais igualmente graves, a violência pode traduzir-se, sobretudo, nas relações de casal ou nas relações familiares sem que, contudo, haja contrapartidas sociais acentuadas ou este alarme público.

O que talvez não se deva perder de vista é que um acto de violência sem motivações religiosas ou políticas podendo, porventura, não ser terrorista, pretende intimidar pelo terror. E, só por isso, tem de merecer discussão pública. E medidas consequentes que, moda de saúde mental à parte, façam com que a migração da saúde mental para a perturbação mental (e, depois disso, da perturbação para a doença mental), não se dê – diante da família, da escola e dos centros de saúde – sem formas atempadas e consequentes de diagnóstico e de auxílio que, em conjunto, previnam “tardes demais” como este, que, apesar de tudo o que se evitou, compromete a vida de quem o protagonizou.