Durante anos, a relação dos partidos com o Chega (CH) foi obsessivamente escrutinada, ao ponto de se ter tornado numa das grandes discussões da política nacional. À direita, importava definir as alianças, nomeadamente se o PSD e a IL estariam disponíveis para incluir o CH em algum acordo para formar ou suportar um governo. À esquerda, importava fazer do CH um alvo a abater, de forma a despertar medos no eleitorado. A clarificação trazida pelo PSD de Luís Montenegro (“não é não”) acabou com esse debate, que tanto havia favorecido o PS nas legislativas de 2022: o CH fica à margem.

Esta clarificação impôs três consequências para o debate político, forçando a redefinição de estratégias para as eleições legislativas 2024. Primeiro, à direita, o PSD teve de fixar como meta desejável obter um resultado superior ao da esquerda (PSD+IL+CDS > esquerda parlamentar), de forma que a exclusão do CH implique o menor dano possível na estabilidade de um novo governo. Segundo, à esquerda, os partidos tiveram de adoptar um novo papão discursivo para assustar o eleitorado nos comícios — o PSD deixou de ser perigoso porque se ia aliar ao CH e passou a ser perigoso porque se vai aliar ao “radicalismo” da IL.

A terceira consequência foi a mais interessante: o CH ficou sob escrutínio e obrigado a definir-se quanto ao PSD e à IL. Está o partido de André Ventura disponível, caso a nova composição parlamentar o imponha, para votar favoravelmente um governo PSD, mesmo ficando completamente à margem? Se o estiver, essa disponibilidade será factor de estabilidade e durabilidade (um compromisso mínimo de 2 anos), ou de instabilidade (com ameaças constantes de derrubar o governo)? E, caso não exista essa disponibilidade, pretende o CH forçar a negociação de uma coligação formal de governo ou de um acordo parlamentar — se sim, com que termos ou prioridades?

Algumas destas perguntas já foram colocadas e obtiveram resposta. O problema é que essas respostas são confusas e contraditórias entre si. Em Setembro, há meros dois meses, André Ventura assegurou que “nunca haverá governo de direita sem o CH“. E ameaçou: “se o houver, ele tem um caminho, que é cair no primeiro dia na Assembleia da República“. Entretanto, desde a demissão de António Costa, o tom do líder do CH suavizou-se, repleto de ambiguidades. Mas, na semana passada, em entrevista na CMTV, questionado precisamente sobre se viabilizaria um governo minoritário PSD, André Ventura forçou uma negociação (“conversa para ter uma alternativa”) e novamente ameaçou: “se nos disseram «não vos queremos para nada», então não vale a pena votarmos neles”. Versão ainda assim diferente do que disse esta semana o líder parlamentar do CH, em debate televisivo (27/11, SIC-N, edição da noite 22h), que subiu a parada: nas suas palavras, uma “geringonça” de direita só será possível em Portugal continental se “o CH tiver cargos governativos“. Entre ameaças e ziguezagues, ninguém sabe com o que pode contar em relação ao CH.

André Ventura tem feito o possível para se esquivar ao esclarecimento, mas deve ser empurrado a clarificar a sua posição. O país habituou-se às indefinições, às ameaças, às ambiguidades e às demagogias do líder do CH, que no seu pedestal populista sempre esteve autorizado à incoerência de afirmar tudo e o seu contrário. Mas uma coisa é fazê-lo na oposição a uma maioria absoluta do PS com um grupo parlamentar de 12 deputados — onde as suas posições são sonoras, mas inconsequentes. Outra coisa, desta vez insustentável, é fazê-lo num contexto de maioria parlamentar de direita, com 30 ou mais deputados (se as sondagens acertarem) que poderão decidir sobre a vida e a morte de um governo. Neste momento, ao disparar em todos os sentidos, o discurso do CH carece de clareza e beneficia unicamente o PS, que tira proveito da incerteza à volta de soluções governativas à direita.

Não é surpreendente porque também não é segredo para ninguém que CH e PS têm mantido uma das mais lucrativas relações partidárias informais de que há memória na democracia portuguesa. Nos últimos anos, ambos cresceram de mãos dadas — o PS obteve maioria absoluta a agitar o papão CH e o CH explorou incessantemente os palcos mediáticos proporcionados pelo PS para ganhar dimensão parlamentar. Agora, com o tabuleiro político a virar-se, o CH tem de decidir se salva ou se quebra essa relação. Há dois meses, André Ventura pediu-nos que lêssemos os seus lábios (“não vai haver governo de direita sem o CH“) e ameaçou derrubar no parlamento um governo PSD do qual não fizesse parte. Agora, com eleições marcadas, ou se retrai de forma inequívoca, ou votar no CH será equivalente a votar PS.

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