O ministro Mário Centeno tinha coisas mais importantes para fazer do que ir à última reunião do Eurogrupo: “Assuntos diversos”, como a preparação do Programa de Estabilidade, respondeu o Ministério das Finanças ao Observador. Coube então a Ricardo Mourinho Félix, o secretário de Estado das Finanças, ir a Malta criticar Jeroen Dijsselbloem na reunião do Eurogrupo. Sobre aquele momento, as opiniões dividiram-se. Correu bem, acha o Governo. Félix foi “palhaço” e “medroso”, acusou um assessor de Pedro Passos Coelho no Twitter. “Caricato”, disse o deputado António Leitão Amaro, do PSD. Houve ou não estratégia nesta ausência de Centeno?

Uma coisa é certa: o Governo está a falar a duas vozes na questão da substituição de Dijsselbloem. Esta terça-feira, em entrevista ao El País, António Costa reiterou o apoio ao ministro da Economia espanhol — um conservador do Partido Popular, de direita — para substituir o holandês na presidência do Eurogrupo. O primeiro-ministro português defende que Luis de Guindos “tem a visão global da Europa, a capacidade de fazer ponte entre diferentes economias, entre diferentes famílias políticas, vem de um grande país, mas compreende os pequenos”. Ora, esta posição é uma contradição com o que disse quatro dias antes o número dois do Ministério das Finanças.

Numa entrevista ao Politico no dia em que criticou Dijsselbloem, o secretário de Estado Adjunto e das Finanças defendeu que o futuro presidente do Eurogrupo deveria vir da área dos socialistas europeus. Foi na última sexta-feira. Mourinho Félix falou em nome do Governo português dizendo: “É também claro para nós que o [próximo] presidente do Eurogrupo pode ser, e deve ser, um ministro das Finanças que venha da área dos socialistas europeus. Já que a maioria das outras posições de topo são ocupadas pelo centro-direita…” O secretário de Estado ainda dizia mais, não excluindo Centeno: “Dito isto, podemos considerar normal quando olhamos para os ministros das Finanças socialistas, e eles não são muitos, que o nome do ministro das Finanças de Portugal apareça como possibilidade.”

Esta contradição pode ter uma justificação. Fonte socialista contactada pelo Observador admite que “o apoio espanhol pode ser uma espécie de engodo, porque já se percebeu que não é aquele lugar que o espanhol quer. De Guindos quer outro lugar [a vice-presidência do BCE, para o lugar de Vítor Constâncio]“. Ora, este apoio de Costa — bem como a não ida de Centeno a Malta, resguardando-se de um confronto direto com Dijsselbloem — pode ser uma opção estratégica. “Costa disse que apoiava De Guindos, caso ele estivesse disponível, se não estiver… deixa Portugal bem posicionado para ter um apoio de Espanha num segundo momento”, reconhece a mesma fonte.

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Já o coordenador dos eurodeputados socialistas em Bruxelas, Carlos Zorrinho, explica ao Observador que “não é momento de trabalhar em nenhuma candidatura” e que a hipótese de Centeno “depende muito da conjuntura.” Zorrinho considera fundamental que o holandês seja “substituído por alguém com uma visão diferente, que não seja preconceituosa quanto aos países do sul”. Nessa situação, destaca o socialista, estão algumas pessoas: “O comissário Pierre Moscovici, que não é ministro, mas podia ser considerado, o italiano [Pier Carlo] Padoan, mas os italianos já estão em muitos cargos, De Guindos, apesar de não ser socialista, e também Mário Centeno”. Ora, se De Guindos for mesmo para BCE, vão-se afunilando as opções.

Mário Centeno tem-se resguardado da polémica de Dijsselbloem. Foi o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, e o primeiro-ministro António Costa que insistiram na demissão do holandês. E, no primeiro Eurogrupo após a polémica, o ministro evitou ir a Malta e ser ele a confrontar o presidente do Eurogrupo. Mesmo que haja estratégia, a justificação oficial é que o Governo estava muito ocupado.

Centeno não foi ao Eurogrupo por causa de “assuntos diversos”

O duelo Félix-Dijsselbloem é a crónica de um confronto anunciado. No dia da reunião, a 7 de abril, o secretário de Estado Adjunto e das Finanças, Mourinho Félix, dava uma entrevista ao Politico, onde antecipava que iria exigir um “pedido de desculpas” a Dijsselbloem. E assim fez. Durante o aperto de mão, o auto-intitulado “special two” diz ao ministro das Finanças holandês: “Quero dizer-lhe que foi profundamente chocante aquilo que disse dos países que estiveram sob resgate. E gostaríamos que pedisse desculpas perante os ministros e a imprensa”.

Jeroen Dijsselbloem respondeu na mesma medida, dizendo que “a reação de Portugal também foi chocante” e acrescentou: “Não lhe vou exigir um pedido de desculpas… mas vou dizer alguma coisa”. O português não tem outra reação senão dizer: “Bom…” Entretanto, o presidente do Eurogrupo sai de cena e, no entender da oposição, de forma humilhante para o país.

Há uma primeira dúvida que antecede 0 duelo Félix-Dijsselbloem: porque não foi Centeno a enfrentar o presidente do Eurogrupo? De ministro para ministro. Ao Observador, fonte oficial do Ministério justifica que “o ministro das Finanças tem estado envolvido em assuntos diversos, nomeadamente na preparação do Programa de Estabilidade”. A mesma fonte acrescenta que “sendo o Eurogrupo/Ecofin informal uma reunião não deliberativa e sendo os principais tópicos de discussão questões previamente discutidas e em que a posição de Portugal é clara, o ministro decidiu delegar no secretário de Estado Adjunto a representação na reunião, a exemplo do que já sucedeu no passado em situações semelhantes.” Mas esta não era uma reunião qualquer: era aquela em que Portugal ia confrontar Dijsselbloem.

Esta terça-feira, o eurodeputado Paulo Rangel, no Público, volta à carga sobre o assunto, considerando que “o primeiro ponto a merecer atenção e censura é a ausência de Mário Centeno da reunião em que previsivelmente a questão seria abordada”. E questiona: “Como é possível que, depois da posição forte que o Governo português quis assumir, o ministro das Finanças esteja ausente da reunião do Eurogrupo? Trata-se de uma clara posição de passividade, a roçar a cobardia, de resto, totalmente congruente com o silêncio sepulcral a que Centeno se remeteu nesta matéria.”

Sobre a postura de Mourinho Félix, Paulo Rangel — que foi a primeira figura da direção do PPE a exigir a demissão de Dijsselbloem — considera que “a desfaçatez do secretário de Estado é inversamente proporcional à sua coragem”, já que “nas imagens divulgadas, é visível o seu incómodo, atrapalhação e até uma reverência paroquial e provinciana, próprios de quem não está de consciência tranquila. Foi incapaz de falar na demissão no momento da grande encenação. Mas pior, foi incapaz de a exigir durante a reunião, que era a sede própria e adequada para o efeito.”

Voltando ao dia do momento Félix-Dijsselbloem, o PSD, logo nessa tarde, colocou o vice-presidente António Leitão Amaro — o mesmo que Félix acusou há meses, no Parlamento, de ter uma “disfunção cognitiva temporária” — a reagir ao embate entre o português e o holandês. Leitão Amaro considerou ainda que estava entre “o caricato e o lamentável” o “número para consumo doméstico” protagonizado igualmente por Mourinho Félix na reunião do Eurogrupo ao não ter “a coragem de transmitir aos outros Estados, no órgão próprio, da forma correta, aquilo que foi a posição expressa pelo povo português” e pela Assembleia da República, e pedir a demissão do presidente daquela instituição, Jeroen Dijsselbloem. Tudo começou quando o holandês disse ao jornal Frankfurter Zeitung — numa referência aos países do Sul da Europa — que “não se pode gastar todo o dinheiro em copos e mulheres e depois pedir ajuda.”

No dia da reunião do Eurogrupo, o assessor de Passos Coelho, António Valle, acusou o secretário de Estado de ser “palhaço e medroso” e as televisões portuguesas de serem “cúmplices da encenação“. E “tão cúmplices que nem dão a reação do PSD“. Isto porque as declarações de Leitão Amaro — acima citadas — não passaram nas televisões.

Na mesma linha, também o vice-presidente da bancada do PSD, Carlos Abreu Amorim, em declarações ao Expresso, foi bastante crítico do momento em que Mourinho Félix confrontou Dijsselbloem: “É uma palhaçada que só nos envergonha“.

Houve ou não encenação? As televisões colaboraram? Mourinho Félix já ia com a crítica fisgada. Estava à espera do momento para confrontar Dijsselbloem. A assessora de imprensa que acompanhou Félix, Rita Tamagnini, nem precisou de dizer nada aos jornalistas no local, que já tinham lido o aviso de Félix em entrevista ao Politico. Ora, como habitual nas reuniões do Eurogrupo, um dos repórteres de imagem das televisões portuguesas tinha direito a recolher imagens, que posteriormente distribui num sistema de “pool”. Neste caso, entrou a TVI, que, como habitual, seguiu os passos do português e captou também som no momento antes do início da reunião, o chamado “table tour”. O Governo já ia preparado para o momento, os jornalistas também já estavam de sobreaviso.

Na segunda-feira foi a vez de Jeroen Dijsselbloem dar a sua versão dos factos: afinal, ninguém pediu a sua demissão. Em entrevista ao jornal holandês De Volkskrant, o presidente do Eurogrupo revelou que Portugal não pediu a sua demissão na última reunião do Eurogrupo. “Esperava que o colega português [era Mourinho Félix] pedisse a minha demissão, mas ele não o fez”, disse. Acabou por reconhecer que Portugal pediu a demissão “antes e depois” da reunião, mas advertiu que isso “não tem significado“, já que “se quisesse realmente a demissão, tinha de ter a colocado em cima da mesa na reunião [do Eurogrupo]. E isso não aconteceu”.

Dijsselbloem: “Esperava que Portugal pedisse a minha demissão. Mas não o fez”

O Observador questionou o Ministério das Finanças sobre a razão de o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais não ter pedido a demissão de Dijsselbloem durante a reunião do Eurogrupo, que limitou-se a dizer: “Nada a acrescentar ao que o primeiro-ministro já disse sobre este assunto”. O primeiro-ministro português voltou a dizer que o holandês não tinha condições para continuar, mas que havia outras prioridades. “Claro que [Jeroen Dijsselbloem] devia abandonar o cargo. As palavras são insuportáveis, mas temos de continuar a trabalhar no que é essencial” para a União Europeia, disse esta segunda-feira António Costa numa entrevista à Rádio Nacional de Espanha (RNE).