“Amigos, o novo governo grego vai provar que as Cassandras deste mundo estavam erradas. Não haverá um confronto mutuamente destrutivo [com a Europa] mas temos uma grande oportunidade para um novo começo“. Esta foi uma das passagens mais marcantes do discurso de vitória de Alexis Tsipras, a 25 de janeiro, apesar da referência pouco feliz à mitologia grega. É que Cassandra não era uma pessimista mas, sim, uma mulher amaldiçoada por premonições que se revelavam sempre corretas. A mitologia grega é riquíssima, mas Alexis Tsipras não encontrou aí um equivalente ao Velho do Restelo da poesia de Luís de Camões para se referir àqueles que adivinharam poucos sucessos a um governo liderado pelo Syriza. Foi há 50 dias. Quem arrisca um balanço?
Uma sondagem de um jornal grego conduzida no início de março mostrou que a popularidade do governo liderado por Alexis Tsipras está em queda. Cerca de 64% dos gregos têm uma opinião positiva do governo, o que seria um registo invejável por quase todos os líderes políticos nos outros países europeus. Uma sondagem equivalente feita um mês antes quantificava, porém, esse apoio bem acima de 80%. “Continua a ser uma margem confortável para o governo”, diz ao Observador Thanos Veremis, Professor Emérito pela Universidade de Atenas. “Mas a descida da popularidade vai acelerar porque o Syriza não será capaz de cumprir todas as suas promessas eleitorais, e quanto mais promessas falhadas maior será o sentimento de deceção“, afirma o grego, co-autor de livros como “A Grécia Moderna: Uma História desde 1821”.
Ao fim de quase 50 dias de governo, a 13 de março, o ministro das Finanças Yanis Varoufakis admitiu “suspender ou atrasar a implementação das promessas [eleitorais]” ao longo dos “próximos meses“, enquanto a Grécia negoceia com as instituições credoras o pacote de reformas com que o país espera concluir o segundo programa de assistência. E porquê “suspender” as promessas eleitorais? “Fazemo-lo no contexto da construção do ambiente de confiança com nossos parceiros”, explicou o grego. Propomos-lhe uma história destes primeiros 50 dias de governo contada em fotografias (clique no link observador.pt, quando disponível, para ler a notícia respetiva).
A popularidade do Syriza pode estar a cair e o cumprimento das promessas eleitorais – ou, pelo menos, a aparência junto da população de que isso está a acontecer – será uma preocupação constante do governo grego. Mas, paradoxalmente, essa será nesta altura a menor preocupação de Alexis Tsipras. Será, na realidade, uma das poucas fontes de consolo para o governo, menos de dois meses após a vitória eleitoral.
Senão vejamos: vários parceiros europeus não escondem que é necessário recuperar a relação de confiança entre estes e o governo grego, fruto, entre outras coisas, das duas reuniões do Eurogrupo fracassadas no início de fevereiro e da aparente lentidão que Atenas continua a demonstrar nas negociações com o Eurogrupo e com a troika. Ou melhor, com as instituições anteriormente conhecidas como troika, já que um dos pontos de insistência do governo de Atenas tem sido a “morte da troika” e a “morte do memorando”. “Temos todo o gosto em deixar de lhes chamar troika, mas as três instituições [Comissão Europeia, FMI e BCE] vão continuar a monitorizar a situação na Grécia”, ironizou a 13 de fevereiro um porta-voz do governo alemão.
A vida também não está fácil para Tsipras dentro do partido. Alexis Tsipras decidiu não submeter o acordo atingido com o Eurogrupo a votação no parlamento de Atenas, apesar de liderar um governo de coligação com maioria absoluta. As “objeções fortes” que, segundo fontes citadas pela imprensa grega, Tsipras enfrentou nas últimas reuniões do Comité Central do partido levaram a que o primeiro-ministro grego tenha preferido proteger-se de uma votação que, na prática, funcionaria como uma moção de confiança.
Fontes do Syriza disseram, mesmo, à imprensa grega que o governo poderia cair e poderiam ser marcadas novas eleições. “Se for decidido que não iremos recuar [no acordo obtido com a Europa] e levar [a assistência externa] até ao fim, então uma reafirmação do mandato popular será necessária”, disse um parlamentar do Syriza ao Capital.gr. “O que acordámos com os nossos credores nunca será implementado. E todos sabemos que assim é”, atirou o deputado, que preferiu não se identificar.
Quem não hesitou em colocar o seu nome por baixo das críticas a Alexis Tsipras foi Manolis Glezos, um eurodeputado pelo Syriza. “A troca do nome da troika para instituições, do memorando por acordo e dos credores por parceiros não altera nada a realidade”, assinalou Glezos num artigo publicado num blogue. Glezos, um dos membros mais destacados do Syriza durante a campanha, pediu desculpa aos eleitores gregos por tê-los feito “participar na ilusão”, pedindo-lhes uma reação “antes que seja demasiado tarde”.
Com a economia provavelmente em recessão, uma vez mais, quebra abrupta das receitas fiscais e fuga de depósitos na banca, o que separa a economia grega do colapso é a cedência de liquidez de emergência por parte do Banco Central Europeu. Mas até essa linha de vida, que o BCE tem gerido de uma forma austera, que na visão do governo grego é “asfixiante”, arrisca perder-se. É que alguns membros do Conselho de Governadores do banco central estão desconfortáveis com a abertura da torneira de liquidez a um sistema financeiro que está sob pressão para comprar mais dívida ao Estado. Cortar o acesso dos bancos gregos à plataforma de emergência corresponderia, discutivelmente, à saída da Grécia da união monetária.
50 dias de Syriza. “Muito maus, mas não tão maus quanto esperava”
As primeiras semanas de governo liderado pelo Syriza, um partido que – recorde-se – é, em si, uma coligação de uma dúzia de pequenos partidos e de uma dúzia de sensibilidades, “têm sido muito maus” no que diz respeito à consistência, à estratégia e, sobretudo, ao cumprimento do programa eleitoral, diz Thanos Veremis. “Mas não têm sido tão maus quanto se esperava, porque o governo está a demonstrar que tem capacidade para aprender rapidamente“, acrescenta o grego, em conversa com o Observador.
Outro grego, mas um analista de mercados financeiros de um grande banco, que prefere não ser identificado, salienta que “o novo governo não votou no Parlamento nem um projeto de lei, nem sequer a extensão do acordo de empréstimo”. Ao Observador, o financeiro diz que “isto diz muito da capacidade deste governo em tomar decisões”. A confiança dos investidores externos, de que a Grécia necessita como de pão para a boca, “só irá voltar quando diminuírem, novamente, os riscos de que a Grécia possa sair do euro, mas isso só acontecerá se este governo for substituído”, atira, defendendo que “a linha negocial que tem seguido até agora [pelo Syriza] não irá levar o país a lado algum“.
Acusado diretamente na reunião do Eurogrupo de 9 de março de ter “desperdiçado” tempo precioso, o ministro das Finanças, Yanis Varoufakis, tem tentado passar a mensagem de que estes 50 dias de governo já granjearam à Grécia mais do que apenas uma substituição da designação troika por instituições. Em especial, o governante grego quer que o “Contrato para a Recuperação e Crescimento da Economia Grega” (aquilo que o espanhol Luis de Guindos prefere chamar terceiro resgate) contenha objetivos menos ambiciosos de contenção orçamental. O acordo vigente com a troika prevê superávits orçamentais primários (excluindo juros) de 4%, em média, até 2020. Uma “exorbitância”, tem repetido Varoufakis, que quer negociar um valor entre 1% e 1,5%. Até agora, a única coisa que o Eurogrupo prometeu à Grécia é que serão fixadas metas de défice “adequadas” e que “não devem colocar em risco a recuperação económica”.
Ainda não se chegou, contudo, a um acordo sobre o número mágico do superávit e sobre o plano de reformas que servirá não só para concluir o segundo resgate como preparar um quase certo terceiro programa, ou contrato, como insiste o governo grego. Kevin Featherstone, Professor da London School of Economics and Political Science (LSE), afirma que “alguns momentos da negociação entre o Syriza e as autoridades da zona euro assustaram a população, e muita fez o que pôde para enviar o dinheiro para fora”. Além disso, as “promessas extravagantes que foram feitas incentivaram alguns eleitores a não pagar impostos. É um cocktail difícil”, diz ao Observador o especialista em Estudos Gregos e políticas públicas da Grécia.
A sondagem que mostra a descida do apoio ao governo Syriza “sugere que a euforia inicial de que o governo Syriza poderia assegurar uma renegociação fantástica com os parceiros europeus deu lugar a um choque com o mundo real“, diz Kevin Featherstone. Tal como o grego Thanos Veremis, Kevin Featherstone, considera que os primeiros 50 dias de Syriza têm sido “tempos de improvisação e aprendizagem rápida“. “A abordagem do Syriza tem sido de populismo progressivo e, nessa base, tem conseguido criar um apoio social alargado. Mas, por definição, esta abordagem dá aos críticos oportunidade para identificar a falta de realismo, as alterações de rumo e contradições entre retórica e substância, o que cria um risco de perda de fé na política“.
Thanos Veremis dá nota negativa ao Syriza, até ao momento, mas salienta que “é uma experiência nova e o público está disposto a esperar, até porque o partido Nova Democracia [que estava no governo] é praticamente inexistente como oposição, não tendo sido mudada a liderança”. Apesar de algum “sentimento de deceção” de que fala o grego Thanos Veremis, visto de fora o governo grego continua a gozar de um apoio assinalável, apesar dos “graves danos” infligidos na economia, nota um economista alemão em Londres, Christian Schulz, do Berenberg Bank.
“Poucos governos conseguiram infligir danos tão graves na economia em tão pouco tempo”, diz o economista. “O sistema bancário está de joelhos, a economia a cair de um penhasco, os cofres públicos praticamente vazios, a confiança do resto da zona euro destruída e o acesso aos mercados externos barrado no futuro próximo. Um desastre completo“, afirma Christian Schulz, defendendo que “é assinalável que o apoio interno continue a ser tão elevado”, mais de 60% segundo as sondagens.
Christian Schulz congratula o governo Syriza por “estar a conseguir vender derrota atrás de derrota à mesa das negociações como vitórias em casa”. Em nada estão a ajudar as “propostas a roçar o ridículo e as fugas de informação para a imprensa”, pelo que “será muito difícil negociar e aprovar no Parlamento alemão o terceiro resgate para a Grécia no final da primavera”. As declarações de Alexis Tsipras na quinta-feira não terão caído bem junto do Parlamento e dos cidadãos alemães. O primeiro-ministro grego afirmou, em Paris, que “é absolutamente vital que a Grécia possa ter uma reestruturação da sua dívida pública” e que “não podemos continuar a fingir que a dívida é viável e reembolsável, quando ascende a 178%” do produto interno bruto anual”.
Que nota dar ao governo Syriza até ao momento? Há quem tenha uma visão menos negra do que Thanos Veremis e Christian Schulz. Nicola Marinelli, um gestor de investimentos da Pentalpha Capital, com larga experiência nos mercados da periferia da zona euro, diz que a avaliação “depende de qual era o objetivo do Syriza e se estavam a fazer bluff com as ameaças” que fizeram antes e logo após as eleições. Nicola Marinelli explica melhor: “Se estavam a fazer bluff, não têm tido um resultado mau porque apesar de não irem ter tudo o que diziam querer, deverão ter alguma coisa”, referindo-se a eventuais concessões na negociação com a Europa. Contudo, “se não estavam a fazer bluff, não jogaram muito bem”, diz o investidor, que não tem dívida pública grega mas tem alguma exposição a dívida de empresas gregas.
Mas quaisquer ganhos na negociação com a Europa compensam a recessão e a fuga de depósitos das últimas semanas? “Penso que essas coisas seriam mais ou menos inevitáveis. Qualquer governo teria dificuldades em virar o rumo dos acontecimentos em menos de uma década”, diz Nicola Marinelli. O investidor assinala que “as reformas são essenciais, mas produzem resultados no longo prazo, portanto não há uma solução rápida“, afirma o italiano, lamentando que “até que as coisas melhorem na economia real, a possibilidade de a Grécia sair da zona euro vai continuar na mente dos investidores”.