Provavelmente uma das mais prejudiciais consequências da eleição de Donald Trump é a mudança de perceção que os cidadãos dos Estados Unidos e do mundo têm da Casa Branca. Trump não tem antecedentes políticos, ainda que já tivesse imagem pública, conhecida da população americana muitos anos antes de sequer sonharmos que podia vir a ocupar o mais alto cargo da nação. E essa imagem consubstanciava-se na conhecida máxima que pior do que dizerem mal, é não dizerem nada.

Aliás, esta é parte da razão porque a elite detesta Trump, enquanto uma parte substancial da América – com as características que já conhecemos – o apoia firmemente. Trump é um deles. Pode não ser um self-made man, mas é o homem que despreza o sistema (que os desprezou a eles) sem qualquer tipo de pudor.

Este prelúdio vem a propósito do livro de que toda a gente fala, o Fire and Fury do jornalista (mais de temas sociais do que políticos) Michael Wolff. Na nota inicial, o autor cria a ilusão de que estamos perante um livro à Bob Woodward: escrito pelo jornalista omnipresente nos cantos dos gabinetes de emergência e da Sala Oval, que colmata as ausências com uma miríade de entrevistas com os atores principais. Neste tipo de livros há um acordo tácito de cavalheiros entre escritor e entrevistados, que introduz decoro e respeito respetivamente na forma como as decisões políticas são tomadas e na forma como os protagonistas são tratados.

Este acordo cai por terra desde a primeira página do livro de Wolff. Quem estava interessado em compreender processos de tomada de decisão, ideias, propostas, visões e principalmente o processo de negociação que leva um grupo tão diverso ideologicamente a concertar políticas é melhor optar por outras leituras. Fire and Fury é a descrição das lutas de poder de Steve Bannon (Alt-Right), Jared Kushner (Democrata, segundo Wolff) e Reince Priebus (um Republicano do establishment) todos eles descritos como incompetentes e/ou perigosos, mas ambiciosos e com agendas próprias, a concorrer pelo “ouvido” de um presidente qualificado com os piores adjetivos possíveis. As figuras de proa que têm verdadeiramente responsabilidade na construção da política presidencial – como John Kelly, Rex Tillerson, James Mattis e H. R. McMaster, já para não falar dos arquitetos da política económica – são largamente descartados, ou servem de figurantes colocados no local certo à hora certa para imputar ainda mais descrédito às personagens principais. Fira and Fury não é um livro sobre política. Aliás, toda essa parte é ruidosamente ignorada. É um livro de mexericos.

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Nada disto teria muita importância se não tivesse sido um best seller mesmo antes de ser publicado. Um livro que mais não é que a extensão do duplo erro cometido pela imprensa durante a campanha eleitoral: a diabolização do futuro presidente (possível porque ninguém quis acreditar que Trump seria eleito, apesar de haver muitos indícios – há vida para além das sondagens – que a vitória de Clinton não estava garantida) e, muito pior, a sua contribuição, ainda que talvez não propositada, para banalização da política e do respeito institucional.

Wolff exacerba estes problemas escrevendo um livro de escândalos e golpes baixos que enfurecem os apoiantes de Trump e dá argumentos, sempre os mesmos, repetidos à exaustão, para criar ódios e desprezos numa sociedade que cada vez terá mais dificuldade de se reconciliar, exatamente no momento em que bem precisamos, pelo mundo, de receitas para reconciliações e acordos entre as partes políticas.

Estou a defender Donald Trump? Não. Estou a escrever que Wolff deita mais uma (grande) acha na fogueira já bem acesa pela eleição do atual presidente, pelas as suas explosões diárias e declarações intempestivas (em frente às câmaras, no Twitter ou denunciadas pelas fugas de informação da Casa Branca) e por toda a entourage que gravita à volta desta presidência, quer amigos, quer adversários, que parecem estar empenhados em descredibilizar a política. Passámos a justificar tudo com a personalidade do presidente, e a responder na mesma moeda, apesar de se estarem a operar em Washington mudanças profundas, concertadas e concretas que podem muito bem criar novas formas de ordem quer interna, quer internacional. Ou seja, estamos sempre a desviar-nos do que é verdadeiramente importante. E este novo estado de coisas – para o qual Wolff veio contribuir – abre um conjunto de possibilidades (Oprah Winfrey, de repente, é presidenciável) que ameaçam a credibilidade da democracia como regime político. E ninguém ganha com isto.