Na semana passada, no intervalo de vários trabalhos atrasados, tive um contacto com o actual pensamento da esquerda, sob a forma de dois artigos de jornal, um de Pedro Nuno Santos, “Os desafios da social-democracia”, e outro de Mariana Mortágua, em resposta ao primeiro, “O desafio de Pedro Nuno Santos ao PS”.
Nenhum dos dois, é claro, visa teorizar em profundidade a sociedade tal como a esquerda a concebe. Ambos os artigos são destinados a marcar posições no interior da Frente de Esquerda que nos governa, a testar a “relação de forças” (expressão que Mariana Mortágua afecciona particularmente) dentro da Geringonça, em presumível resultado da recente abertura de Rui Rio a entendimentos com o PS. Mas, como é natural, algo do fundo teórico do actual PS e do BE vem à superfície. Por isso, a leitura dos artigos é instrutiva e incita a superar o natural pudor que se tem em relação à impressão que nos enganamos no andar do prédio e assistimos a uma conversa íntima dos vizinhos de cima.
O que nos dizem então Pedro Nuno Santos e Mariana Mortágua? Limitar-me-ei a alguns tópicos seleccionados. E começarei pela questão da liberdade. Pedro Nuno Santos nota que é preciso libertar a palavra da carga que a direita lhe atribuiu, isto é, no entendimento do autor, da sua associação aos interesses económicos dos mais poderosos. Como o fazer? Sem surpresa, defendendo um Estado forte, que garanta a liberdade “para todos, e não apenas para alguns”. É essa liberdade que a social-democracia deve procurar concretizar. Mariana Mortágua, que está, de resto, convencida que a social-democracia já não existe, afina pelo mesmo diapasão: a liberdade é definida por relação ao serviço público e à defesa do trabalho. Note-se, por favor, esta redução da liberdade à força do Estado. Algo que se torna ainda mais nítido quando um e outro se referem ao liberalismo.
Com efeito, para Pedro Nuno Santos a “liberalização dos mercados” é o inimigo principal. A “hegemonia do neoliberalismo” (o “neo” não acrescenta nada, é puro calão político) é algo que urge combater. A “direita neoliberal”, que se apropriou “de conceitos fundamentais para a esquerda”, como o de liberdade, dando-lhes “novos significados”, é o inimigo a abater. É preciso destruir “o velho liberalismo económico renovado e intensificado”. Como seria de esperar, Mariana Mortágua concorda. A “ofensiva liberal” – ou “neoliberal”, as duas expressões aparecem com significado naturalmente idêntico, sendo que a segunda aparece duas vezes no artigo – encontra-se em todo o lado. A “evolução neoliberal” alastra, e o PS (a “família socialista”) tem, convém notar, imensas culpas no cartório. A “liberalização financeira” é o inimigo que se encontra apoiado no “consenso europeu e liberal” de onde dimanam as “regras neoliberalizantes da União Europeia”.
Quem nos pode libertar de tal “hegemonia” e de tal “ofensiva”? O Estado, é claro. O “Estado Social forte e universal”, diz-nos Pedro Nuno Santos, é a única garantia contra a hegemonia liberal. E Mariana Mortágua compreensivelmente manifesta o seu acordo. O Estado deve ter o controle dos sectores essenciais, como Jeremy Corbyn, aprovadoramente referido, defende. E tal só pode ser conseguido através de uma luta sem tréguas do público contra o privado. Pedro Nuno Santos declara que o mal por excelência é a “radical privatização de empresas e serviços públicos”, que devem voltar para as mãos do Estado. Mariana Mortágua, por sua vez, não poupa palavras contra a “predação privada”, o “rentismo privado”, contra os “grupos da saúde privada” (sic, o lapso é revelador: a própria saúde deve ser pública). O Estado tem a missão de pôr cobro a tudo isto.
Até aqui, o acordo entre os dois protagonistas é perfeito, com a eventual excepção da questão da social-democracia, como disse antes. Pedro Nuno Santos crê que ela existe e que comporta desafios, enquanto Mariana Mortágua é taxativa: “A social-democracia já não existe”. Mas aqui a diferença é mais verbal do que outra coisa. O que Pedro Nuno Santos chama “social-democracia” pouco se distingue daquilo que Mariana Mortágua oferece e a que, muito compreensívelmente, não dá nenhum nome particular. Em ambos os casos, o que está no centro de tudo é a insistência no papel omnipresente do Estado como salvador da sociedade e a luta contra toda e qualquer coisa que mexa e lhe escape.
Nessa luta, que quase adquire proporções cósmicas, ambos estão juntos. As diferenças são de detalhe e meramente conjunturais. Mariana Mortágua permite-se duvidar que o PS ouça as propostas de Pedro Nuno Santos. Antecipadamente, ele já lhe havia respondido com uma curiosa confissão: o seu desejo que “a mudança política conseguida em 2015 seja uma efetiva viragem e não apenas um parênteses na história do PS e da democracia portuguesa”. Estejamos tranquilos: ambos partilham aquilo que Pedro Nuno Santos eloquentemente define como“a gramática política e moral que distingue a esquerda da direita”.
A gramática em questão, como se terá notado, é de um primitivismo extremo. Alicerça-se em oposições primárias que desafiam o mais elementar bom-senso. Não se trata de modo algum de ponderar os campos em que o Estado deve pesar na sociedade e de reflectir naqueles em que a sua acção é dispensável. Nesta curiosa conversa, o que se ouve é uma coisa bem diferente: é um ataque maniqueísta contra tudo o que exista fora do Estado. O “privado” é o inimigo declarado em toda e qualquer circunstância.
A radical falta de imaginação política manifesta-se aqui na rigidez quase alucinatória das oposições. Que entre o “privado” e o “público” possa haver diálogo e partilha é, neste sistema de pensamento, uma impossibilidade lógica. Daí resulta a muito curiosa e exclusiva concepção da liberdade que aparentemente Pedro Nuno Santos e Mariana Mortágua partilham. A liberdade é o Estado e mais nada. A “libertação da carga” que a direita atribuiu à palavra, o resgate linguístico operado pela gramática política e moral da esquerda, conduz directamente ao vazio de sentido. A “liberdade para todos” resulta na liberdade para ninguém. Qualquer sopro fora do Estado é “ofensiva liberal” que urge erradicar.
A muito triste pobreza de pensamento que a conversa exibe revela algo que nos deve assustar: muita esquerda, e muita esquerda do PS por estes dias, não gosta da liberdade. Só nos resta esperar que o parênteses que Pedro Nuno Santos tanto teme seja isso mesmo: um parênteses.