Fico sempre um pouco surpreendido quando ouço louvar a habilidade de António Costa. Não é porque ache que ele não é hábil. Admito até que seja. Mas a verdade é que, até agora, nunca precisou de o ser. Quando tudo dependeu só dele, aliás, as coisas nem sempre correram bem. Lembram-se das eleições de 2015? Costa enfrentou o primeiro governo que não pôde usar a inflação para dissimular cortes de salários e de pensões. Toda a gente, antes da votação, tentava adivinhar o tamanho da sua maioria. Para surpresa geral, Costa perdeu. É verdade: PSD e CDS não repetiram a maioria absoluta. Mas Costa, sem ter de responder pela austeridade, impôs ao PS o seu segundo pior resultado eleitoral desde 1991. Habilidade?

Nesse domingo de 2015, a ninguém teria ocorrido identificar Costa como o antídoto contra o definhamento do socialismo europeu. Mas em Portugal, não era só o PS que não convencia o eleitorado. PCP e BE tinham conseguido abafar as imitações locais do Podemos. Mas nem a “maior crise do capitalismo” lhes deu em 2015 mais votos do que em 2009. Com a CGTP a esvaziar-se, o PCP decidiu usar o PS para impedir mais reformas “neo-liberais”, e o BE seguiu-o. Eis Costa, depois de derrotado, no governo. Habilidade?

Nem tudo ainda estava seguro. Havia o risco de os investidores desconfiarem, ou de o equilíbrio orçamental, de que dependia o financiamento europeu, obrigar a maioria a votar austeridades. O apoio do PCP e do BE permitiu cortes no investimento e nos serviços públicos, sem haver ninguém para gritar que estavam a destruir o Estado social. Mas iria chegar? A sorte, porém, bateu uma segunda vez à porta de Costa, desta vez sob a forma da melhor conjuntura dos últimos vinte anos, com a conjugação de juros baixos, petróleo barato, turismo, exportações, e bancos outra vez a estimular o consumo. Habilidade?

Os auspícios melhoraram, mas ainda assim não o suficiente para os sábios admitirem uma maioria absoluta em 2019. Por momentos, no Verão de 2017, entre os incêndios e o roubo de armas, até pareceu que a sorte o tinha abandonado. Não tinha. A semana passada, eis que Rui Rio lhe vem entregar o PSD nas mãos, como o quarto sócio da geringonça. De repente, Costa passou a ter pela frente uma oposição desejosa apenas de ter com ele “reuniões de trabalho”. Habilidade?

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O PSD vinha a insistir na deriva esquerdista de um PS comprometido com o PCP e o BE, e na incompatibilidade socialista com quaisquer reformas. Se os portugueses quisessem um governo reformista, teriam de votar no PSD ou no CDS. Talvez não chegasse para ganhar em 2019. Mas era, pelo menos, uma atitude de oposição. Rui Rio desligou-se de tudo isso. Ao deslocar-se em direcção ao PS, mostrou que quem estava em deriva era o PSD. Ao proclamar que as reformas só podem ser feitas com o PS, fez dos socialistas os árbitros do reformismo. Rio diz que está a “recentrar” o PSD. De facto, o que está a fazer é a “recentrar o PS”, promovendo-o a “partido charneira” do regime.

Talvez António Costa nunca se tivesse atrevido a pedir tanto à sorte. Numa semana, Rio relançou ainda a eterna discussão sobre o que é o PSD, e arranjou uma guerra com o seu grupo parlamentar. Em 2019, Costa vai poder apontar para um PSD dividido e em crise de identidade, e perguntar aos portugueses se de facto há alternativa.

Não vale a pena disfarçarmos: Rui Rio promete ser para António Costa o talismã eleitoral que Santana Lopes foi para José Sócrates em 2005. Más notícias para aqueles que ainda estão à espera de confirmar a lendária habilidade de António Costa. Continuando as coisas assim, corremos o risco de nunca a chegar a ver.