É sabido que, no papel, a liberdade de escolha da escola não existe. De resto, no debate político, propício a equívocos e demagogias, reduziu-se erradamente a questão à competição entre escolas públicas e privadas, no lapidar e segregador “quem quer escolher que pague”. Mas, na realidade das escolas e das suas comunidades, a história é bem diferente.
Veja-se um caso recente. Na passada sexta-feira, foram conhecidas as colocações de alunos no jardim de infância do agrupamento Filipa de Lencastre (em Lisboa e uma das escolas públicas mais bem reputadas do país). E o que aconteceu? O que acontece todos os anos: crianças da área geográfica de influência da escola (que têm prioridade nas matrículas) não entraram porque muitas das vagas foram preenchidas por crianças de outras zonas da cidade. E isto sucede porque os pais dessas crianças contornam as regras indicando moradas falsas ou nomeando amigos ali residentes como encarregados de educação dos filhos, para que seja a morada desses amigos a contar na hora da avaliação da matrícula. Ou seja: muitas famílias lisboetas escolhem aquele agrupamento para matricular os seus filhos e, porque os critérios de selecção os excluiriam, de tudo fazem (e conseguem) para tornear as regras. Ora, a directora do agrupamento assegura que “os critérios de admissibilidade dos alunos cumprem integralmente os dispositivos legais em vigor”. Tem razão – e, de resto, a culpa do imbróglio não é sua nem da escola. A questão é que os dispositivos legais em vigor estão cheios de alçapões, permitindo tudo e o seu contrário a quem queira levar a água ao seu moinho. Basta saber.
O fenómeno repete-se anualmente ali e em várias escolas do país, com particular insistência nas cidades de Lisboa, Porto e Coimbra. É a liberdade de escolha da escola à portuguesa – não existe formalmente e, desde que feita às escondidas, não gera anticorpos. Uma vergonha que explora as lacunas da lei e que só está ao alcance de quem tem os meios (intelectuais, rede de contactos, tempo) para se impor sobre os outros. Alegando uma garantia de equidade, o Estado que rejeita criar um sistema que dê aos pais a liberdade de escolher uma escola na rede pública é o mesmo Estado que permite que tantos o façam de forma ilegítima, apesar de eventualmente legal.
Ora, o problema existe. E há três formas possíveis de lidar com ele. A primeira é ignorar a situação e fingir que não existe problema algum – a opção escolhida pelo ministério da educação desde sempre. A segunda é iludir-se de que, através da intervenção da Inspecção-Geral da Educação, a situação se resolveria a favor dos alunos residentes junto às escolas. É essa a reivindicação dos moradores do bairro do agrupamento Filipa de Lencastre, numa petição que organizaram ou ainda noutra que circula, mas que tudo indica seria ineficaz – não havendo ilegalidade, não há espaço para a Inspecção-Geral agir. Por fim, a terceira: aceitar que a evolução do sistema educativo – cada vez mais descentralizado e com mais autonomia pedagógica e curricular nas escolas – pede um modelo de selecção de escolas dentro da rede pública permeável e respeitador dessa diversidade. É esta a opção mais justa, mas também a que mais assusta quem se habituou à lei do mais forte na educação.
As escolas públicas estão cada vez mais diferentes entre si. Fruto da descentralização e do acréscimo de autonomia, as escolas estão a gerar opções pedagógicas e estratégias educativas diversas. E, no meio dessa diversidade, há opções e estratégias que se adequam melhor a uns alunos do que a outros, razão pela qual permitir a escolha dos pais não pode continuar a ser visto como um privilégio, mas sim como uma necessidade. Num sistema educativo muito centralizado, como foi concebido o português, era teoricamente indiferente frequentar a escola A ou a escola B, uma vez que ambas tinham de seguir à risca as indicações do ministério. Ora, isso agora acabou – frequentar uma ou outra escola implica seguir um ou outro caminho educativo. O sistema mudou – antes, pedia-se às escolas que fossem iguais, agora pede-se que sejam diferentes e geradoras de soluções educativas à medida do seu contexto. Assim sendo, a lei também tem de mudar – justifica-se que os pais ponderem e seleccionem a oferta educativa que melhor responde às necessidades de um filho.
O debate já não é, como habitualmente se discute, se deve ou não haver liberdade de escolha da escola. Ela já existe nas escolas públicas, mas de forma ilegítima e só para alguns – os que saibam dobrar as regras. A questão é, portanto, se o ministério da educação consegue viver com essa injustiça ou se quer alargar a todos a possibilidade de escolher, a começar pelas populações mais desfavorecidas.