Durante dois anos, o país esteve sujeito à tese de que o optimismo e o “pensamento positivo” são, como nas revistas cor de rosa, o que mais importa. Bastavam afecto e boas notícias para tudo correr bem. Patetice? Alguma. Manha? Bastante. Mas também uma teoria: a de que a verdadeira “realidade”, em política, consiste apenas em “fenómenos mediáticos”. No “estado da nação”, conta menos como a nação verdadeiramente “está”, do que como a nação se “sente”. E o sentimento da nação, segundo a teoria, é algo que pode ser manipulado. A política, em suma, é sobretudo “comunicação e gestão política”.
Viu-se essa teoria posta a nu durante a tragédia de Pedrógão-Grande e a “humilhação” de Tancos. O que importava não era tomar decisões, mas aparecer na televisão com a cara certa (olhos húmidos, vá lá, um bocadinho mais húmidos, isso, muito bem, as câmaras estão além, corra…). O que importava não era perceber o que se tinha passado, mas persuadir o público de que a responsabilidade só chega aos ministros quando são condenados em última instância, e que, nos demais casos, apenas os “operacionais” são responsáveis (ponha um ar displicente, assim, mostre-se enfadado com as perguntas, levante a cabeça, olhe-os de cima…).
Fazer política, de acordo com a teoria, é gerir “imagens” e “momentos simbólicos”. Era aliás desse ponto de vista que António Costa passava por ser muito “hábil”. Por isso, Costa não foi censurado, na imprensa, por ter tolerado um sistema de emergência sem eficácia ou instalações militares sem segurança — mas por ter ido de férias. Como é que um “mestre” pôde cometer um “erro” tão básico? Foi assim que o jornalismo e o comentário se desencantaram com Costa: afinal, o “fenómeno” não era tão bom como parecia.
O governo, a certa altura, parece ter esperado que umas idas à televisão e uns minuetes de passa-culpas chegassem para diluir 64 mortos e umas centenas de quilos de armas roubadas. É compreensível. Pois se durante dois anos, com uma das maiores dívidas do mundo em relação ao PIB, a mais baixa natalidade da Europa, a economia europeia que menos cresceu no século XXI, bancos falidos, um Estado capturado por grupos de interesse, finanças dependentes do BCE e gerações para quem as únicas perspectivas são servir à mesa os turistas que têm medo de ir para a Tunísia — pois se com tudo isso, conseguiu “fazer passar” a “imagem” eufórica de que tudo “corria bem”, porque não havia de conseguir mais uma vez?
Este tipo de governação não começou com Costa. Mas para um primeiro-ministro que perdeu as eleições e para um partido europeísta amparado em partidos anti-europeístas, que outra coisa há para fazer, senão saciar clientelas e controlar a “opinião” (primeiras páginas, aberturas de telejornais, redes sociais)? Daí a precipitação do Ministério da Administração Interna ao publicitar sondagens no site oficial: é tudo o que importa. Daí, também, a resistência de Costa à demissão dos ministros: como todos os fracos, não pode mostrar fraqueza.
Ao contrário do SIRESP e da vigilância de Tancos, a “comunicação e a gestão política” do governo funcionavam: durante dois anos, as cativações não foram discutidas, e toda a gente esqueceu as viagens da Galp. Mas eis que até a “gestão política” parece estar a falhar. Como todos os sistema dependentes da imagem, basta uma imagem para o abalar. A realidade não mudou: moveu-se apenas o suficiente para revelar a extrema vulnerabilidade de um “fenómeno mediático” que nunca teve outro fim senão salvar, a qualquer custo, as carreiras de uns quantos oligarcas.