Estamos a assistir à presidencialização do regime político? A pergunta é legítima. Já se percebeu que Marcelo Rebelo de Sousa é o Presidente mais activo da história da democracia portuguesa. Pobre António Costa, onde vai, Marcelo já lá está ou já lá esteve. Além disso, Marcelo dá as suas opiniões sobre tudo, desde questões de política externa, até aspectos da governação, passando por negócios privados, da banca até às telecomunicações. Esta semana avisou o governo que o controlo da informação é próprio das ditaduras e não das democracias. Na entrevista de hoje ao Diário de Notícias, relembra que, na política nacional, o Presidente é a única potência nuclear; e se for necessário usa a arma atómica da dissolução.

Na política portuguesa, o Presidente da República goza de uma mistura explosiva: legitimidade política directa e tempo. O Presidente é eleito por uma maioria dos portugueses. Goza assim de uma relação política directa com o povo, sem qualquer intermediário, o que lhe dá uma legitimidade popular politicamente poderosa. Este monarca eleito tem, além disso, tempo, muito tempo durante o dia para pensar em estratégias políticas. Não tem que governar, nem que tomar conta de ministros ou do partido, nem de viajar para Conselhos Europeus. Tem 24 horas e 7 dias da semana para pensar no exercício do seu poder. E, de acordo com o próprio, o actual Presidente não precisa de muitas horas de sono.

Se Marcelo está numa posição política forte, António Costa está numa situação mais fraca. A derrota nas eleições de 2015 é, e continuará a ser, um problema para a relação de poder com o Presidente. A geringonça foi suficiente para Costa chegar a PM, mas nunca será para gozar da mesma legitimidade eleitoral e política de que goza Marcelo. Há aqui claramente um problema para o PM e para o equilíbrio do sistema político português. Em termos de legitimidade política, Portugal está na situação oposta dos regimes parlamentares puros, onde os Presidentes são eleitos pelos parlamentos e os PMs resultam de vitórias eleitorais. Em Portugal, passou-se o contrário: o PM foi eleito pelo parlamento e o Presidente pelo povo.

O problema presidencial de Costa entende-se se olharmos para as presidências de Soares, Sampaio e Cavaco. A ambiguidade do semi-presidencialismo português permite aos inquilinos de Belém a adopção de estratégias de aumento de poder. Essas estratégias só podem ser impedidas por factores externos, em primeiro lugar pela existência de um PM forte politicamente. Soares tudo tentou para reforçar o seu poder. Não conseguiu porque do outro lado, em São Bento, esteve sempre um PM, Cavaco, com maiorias absolutas. Em termos de legitimidade política, estavam iguais.

Na Presidência de Sampaio, nos cerca de seis meses em que houve um PM sem a legitimidade do voto popular, Portugal viveu um momento presidencialista. Sampaio derrubou o líder do maior partido da oposição, Ferro Rodrigues, e depois escolheu o momento para dissolver a Assembleia da República –apesar de, tal como agora, o governo estar apoiado numa maioria parlamentar – permitindo o regresso do PS ao poder. Cavaco também conviveu com PMs com uma legitimidade eleitoral forte, Sócrates e Passos Coelho. A eleição de 2015 encontrou-o no final do segundo mandato e sem tempo para adoptar uma estratégia presidencialista. Em resumo, desde 1985, excluindo os seis meses de Santana Lopes, é a primeira vez que o PM tem uma legitimidade política mais fraca que o Presidente.

As tácticas de recurso para se chegar ao poder, como foi a geringonça, podem parecer muito inteligentes no momento em que são executadas, mas a prazo provocam problemas inesperados. Chegando a PM, depois de perder eleições, Costa colocou-se numa posição de fraqueza em relação a Marcelo, eleito pela maioria dos portugueses. A presidencialização do regime pode ser o preço da geringonça. E o desfecho não depende de Costa. Depende de Marcelo. As condições políticas para o reforço do poder do Presidente estão reunidas. Restam duas questões. Marcelo tem vontade de prosseguir uma estratégia presidencialista? E, em caso afirmativo, terá sucesso?

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