A aprovação e subsequente desaprovação do imposto especial que o Bloco de Esquerda propôs sobre o sector da energia trouxe-nos o Bloco de Esquerda de volta. Se calhar, já vem tarde, mas mais vale tarde que nunca.
Catarina Martins, numa excelente entrevista ao Expresso — excelente do ponto de vista político, não estou a dizer que concordo com tudo o que Martins defende, nem sequer com a maior parte —, atira-se ao Partido Socialista e ao seu Governo. Faz acusações duras e certeiras, nomeadamente quando diz que o Partido Socialista é permeável aos grandes interesses económicos.
Francisco Assis reagiu. Cito: «O PS tem que defender a sua honradez», porque é um partido «que sempre colocou o interesse público acima de qualquer interesse particular». Francisco Assis, não. Vai-me desculpar, mas não dá para engolir essa. Tenho muito respeito por si. É até possível que em alguma eleição futura eu vote em si, mas não dá para dizer que o Partido Socialista «sempre colocou o interesse público acima de qualquer interesse particular». O Partido Socialista sempre fez parte do Bloco Central de interesses. Sempre. Faz parte da sua tradição.
Nem sequer é necessário lembrar o que foi José Sócrates e a teia de interesses particulares que criou à sua volta — não falo em corrupção para não me acusarem de me querer substituir aos tribunais. Basta lembrar o mais histórico dos seus dirigentes, Mário Soares, e o seu comportamento quando foi o Caso Melancia, despoletado pelo fax de Macau a pretexto da construção de um aeroporto nessa região.
Mas analisemos especificamente as acusações de Catarina Martins. Quando fala na permeabilidade do PS aos interesses económicos, refere-se essencialmente a três temas: energia, leis laborais e saúde. Em relação às leis laborais, não concordo. Nesse domínio, as divergências entre PS e BE são essencialmente ideológicas. O PS, e basta ler o programa com que se candidatou às últimas legislativas, defende mesmo um mercado laboral mais flexível. O BE defende um mercado mais “garantista”. O equilíbrio encontrado para esta legislatura é pouco ou nada fazer no que respeita a leis laborais (excepto salário mínimo). Mas em relação aos outros assuntos, independentemente das nossas opções ideológicas, Catarina Martins tem tanta razão que até dói.
É inaceitável que Maria de Belém tenha sido convidada para rever a Lei de Bases da Saúde. Vale a pena lembrar que Maria de Belém trabalha para grupos privados de Saúde. Mas o caso é mais grave. Maria de Belém não tem um pingo de noção do que é um conflito de interesses. Basta lembrar que ela foi presidente da Comissão de Saúde na Assembleia da República ao mesmo tempo que era paga pelo Grupo Espírito Santo Saúde. Quando em campanha para as presidenciais foi confrontada com este facto, em vez de, naturalmente, reconhecer que tinha errado e que teria mais cuidado no futuro, limitou-se a dizer que a única ética que interessava era a lei e que nada tinha feito de ilegal. É esta pessoa que o governo socialista convidou para liderar os trabalhos da revisão da Lei de Bases da Saúde. Lamento, caro Francisco Assis, mas não dá mesmo para argumentar que a tradição do PS é pôr o «interesse público acima de qualquer interesse particular».
Quando olhamos para o sector da energia, a revolta de Assis com as acusações feitas ao PS ainda parece mais surreal. As rendas da energia foram identificadas pela “Tróica”, que exigiu a sua redução. Grande parte dessas rendas foram criadas pelos governos socialistas de José Sócrates. E, já que falei no conceito de ética de Maria de Belém, recordo que também Pina Moura, ministro nos tempos de Guterres, presidiu à Iberdrola. Quando questionado sobre a falta de ética de ocupar esse cargo enquanto era deputado e depois de ter sido ministro da Economia, respondeu que não havia nenhuma falta de ética porque não estava a violar a lei. A tradição socialista é isto, não conseguir distinguir a ética da lei. São incontáveis os ministros e secretários de estado que, depois de o terem sido, foram trabalhar para as grandes empresas do sector energético. Pina Moura é um pequeno exemplo.
Caro Francisco Assis, o PS já reagiu oficialmente ao facto de EDP ter pagado centenas de milhares de dólares à Columbia University, sendo que uma das contrapartidas era contratar Manuel Pinho, ex-ministro de um governo socialista, para lá dar umas aulas?
Mas voltemos ao Orçamento do Estado. Num primeiro momento, há um acordo entre o governo e o Bloco de Esquerda (Catarina Martins até nos conta que fez mudanças à sua proposta inicial por sugestão do Ministério das Finanças) para taxar as rendas excessivas da EDP. As receitas desse imposto seriam dedicadas a baixar os preços da energia em Portugal (dos mais altos da Europa). Uns dias depois, os deputados socialistas mudam de opinião e revertem o que foi combinado. Mais uns dias e somos informados que Eduardo Catroga está de saída da EDP e será, provavelmente, substituído como chairman ou por Luís Amado ou Lacerda Machado. Escolha difícil esta, entre um ex-ministro socialista ou um grande amigo do actual primeiro-ministro. E, depois desta sequência de eventos, com tudo o que é conhecido, Assis indigna-se com as acusações de Catarina Martins, argumentando que o «PS tem que defender a sua honradez» e «que sempre colocou o interesse público acima de qualquer interesse particular».
Caro Francisco Assis, desculpe-me a franqueza, candura a mais é pecado.