Em todas as críticas sobre o euro há um défice profundo de entendimento sobre o que é a União Europeia (UE). Na maior parte dos casos, trata-se de análises económicas – de macroeconomia, que os próprios economistas reconhecem não ser bem uma ciência -, alheias à dimensão política da construção europeia e à visão realista e ousada que a subjaz.

Antes que a maior parte dos leitores pare de ler, irritada com o tom sobranceiro do primeiro parágrafo, peço alguma paciência. Nos meus 32 anos de investigação e acção em assuntos europeus, habituei-me a duas atitudes principais e distintas sobre a UE – alheamento total ou críticas superficiais, radicais, de matriz mais ou menos ideológica (nacionalista?) -, com rara atenção à realidade e à natureza do processo europeu de integração. E peço por isso condescendência para com a minha reacção e o eventual uso de argumentos de autoridade.

A excelente análise de Vítor Bento neste jornal é um bom exemplo do que refiro. Tecnicamente brilhante, altera de modo (pouco) subtil a atribuição de responsabilidades, que faz passar dos países deficitários (devedores) para os excedentários (credores); talvez valesse mais falar de partilha dessas responsabilidades. Trata-se de uma análise económica sólida, assente em estatísticas correctas e gráficos sugestivos. Mas esquece um ponto fundamental: a razão de ser da zona euro e da moeda única. E, por isso, dos seus dados e análise impecável resultam ilações erradas e perigosas, como demonstram algumas reacções. É aliás José Manuel Fernandes que chama a atenção: a conclusão essencial da análise de Bento é que a União precisa de mais e não de menos integração; nada de novo, como explico mais abaixo.

O euro existe porque há um mercado interno. O mercado interno existe porque há uma união de povos e países europeus. A UE existe porque há uma Europa de 50 países num território de 10 milhões de km2, o segundo mais pequeno continente do Mundo; em perda demográfica acelerada; em perda evidente de competitividade; em perda de influência, capacidade militar e até de persuasão moral; um continente que foi palco dos maiores conflitos da Humanidade e ainda hoje vive sob permanente ameaça (vidé Ucrânia). Um continente em perda de si mesmo.

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É por tudo isto que existe o euro. O euro não é perfeito. Todos concordamos que foi mal concebido, num equilíbrio de egoísmos e agendas nacionais, sem cuidar da exequibilidade de uma União Económica e Monetária (UEM) desprovida de mecanismos e instrumentos essenciais para viabilizar a integração de economias com distintos graus de desenvolvimento. Permitam-me recordar as razões da sua criação: “Na Europa dos inícios de 90, a arma alemã mais temida não eram as suas forças armadas mas a força da moeda (e o poder do seu exército – o Bundesbank). Ao obter de Kohl a promessa de criação de uma moeda única, Mitterrand sentiu a guerra ganha. (…) responsáveis alemães, como (…) Richard von Weizsäcker ou Hans-Dietrich Genscher (…)afirma(ram) que a introdução do euro foi parte dos sacrifícios que permitiram a unificação alemã” (de um artigo de 7 de Novembro de 2014).

O euro foi mal concebido. Não tinha de ter sido assim. Em 1969, a então CEE iniciou a primeira tentativa de criar uma união monetária. Os responsáveis dos 6 Estados-membros tinham concluído que o mercado comum – espaço de livre circulação de mercadorias, serviços, trabalhadores e capitais – e a união aduaneira, concluídas em Julho de 1968, 2 anos antes do previsto, precisavam dela. Só uma UEM garantiria o bom funcionamento do mercado, objectivo maior do Tratado de Roma, evitando a utilização autónoma e massiva de políticas cambiais pelos Estados-membros. Essa primeira tentativa, plasmada no chamado “plano Werner”, previa uma estrutura mais adequada do que a que viria a ser consagrada em Maastricht, 20 anos mais tarde. E isso porque os responsáveis tinham a consciência clara de que, sem uma união monetária eficaz, o mercado interno dificilmente seria sustentável.

E tanto assim era que, gorada essa primeira tentativa de criar uma “zona euro” (o projecto morreu a meio dos anos 70), os europeus se viram obrigados a criar um sistema monetário europeu (o SME) para conter os movimentos cambiais entre as várias moedas nacionais. Foi uma solução pouco conseguida e instável, com vários alinhamentos cambiais, que fizeram do mercado comum uma manta de retalhos a que os Estados-membros impunham cada vez mais limites e restrições. Daí a necessidade, em 1985, de lançar um plano para um (verdadeiro) mercado interno até 1992. O SME acabou por implodir na prática em 1993 e o mercado interno só pôde realizar-se porque, nessa data, estava já em marcha a segunda (e conseguida) tentativa de criação da UEM e da moeda única.

Resumindo, não é possível um mercado interno com união aduaneira, a funcionar correctamente – e durante muito tempo –, num ambiente de distintas moedas. Não é possível na União e não foi nunca em parte alguma do Mundo. É bom que os detractores do euro pensem nisso quando pensam nisso: sem moeda única, não há mercado interno.

Juntaram-se países com culturas económicas muito distintas no euro, diz Bento, concluindo que ou a Europa se federaliza ou mais vale que se dissolva, por ser impossível sustentar uma união monetária sem federalismo fiscal e, quiçá, união política. Mas isso é alguma novidade (embora a união política no sentido estrito seja um exagero)? O objectivo expresso da União é justamente permitir que os países mais pobres (a que Vítor Bento eufemísticamente chama deficitários) se aproximem dos excedentários (os ricos). É apoiar países como Portugal no seu esforço para vencer o atraso crónico de séculos e aceder a um novo patamar de desenvolvimento, em conjunto – e numa união – com um grupo de nações mais ricas e desenvolvidas. Para isso é preciso esforço e algum sacrifício, mas não é preciso, nem sequer desejável, prolongar políticas de austeridade “para sempre”.

A Europa é desequilibrada e assimétrica? Mas que país – para compararmos com o que podemos, já que não há no Mundo outra “União Europeia” – não o é? Pensem nos Estados Unidos, por exemplo, onde a diferença entre alguns estados federais equivale à que existe entre os países europeus “deficitários” e “excedentários” (o rendimento médio das famílias do Mississípi é menos de metade do das de New Jersey). E o que dizer do endividamento de alguns estados americanos, das dificuldades de pagamentos, das situações de falência… Alguém preconiza a saída do dólar por parte de Nova Iorque? Será a Califórnia convidada a abandonar a União (deles)? A força dos EUA (como bem assinala o leitor Luís Sequeira em comentário ao artigo de Bento) é justamente serem uma união. Como a Europa pode e deve ser: união alfandegária, mercado interno, UEM, união fiscal, união orçamental, união política. Nesse caso – quando for o caso, espero eu -, os Estados europeus, mantendo a sua independência (!) mas sem a ilusória soberania que alguns lhes atribuem, serão invariavelmente mais ricos e prósperos do que os seus congéneres de outros países, e a Europa como um todo terá ganho o desafio do Mundo global. O desafio do futuro.

Duas coisas me irritam, confesso, nos cépticos do euro: a constante referência à soberania nacional e o apelo ao regresso ao tempo do escudo, quando o mel e o leite corriam abundantes pelas doces encostas pátrias, concedendo a todos o benefício do progresso e do bem-estar. Quanto à soberania, lamento, não sei do que falam: há quanto tempo não é Portugal verdadeiramente soberano nas matérias que transferiu para a União e cuja recuperação formal não serviria de qualquer modo para nada? Num Mundo global, países da nossa dimensão e com os nossos recursos têm pouca soberania – sustento aliás que Portugal ganha soberania na condição de membro da União. Quanto ao argumento do passado, de um tempo em que um escudo pujante nos garantia um lugar cimeiro entre as nações ricas do Mundo: quando foi isso? Portugal tinha em 1985, ano anterior à adesão, um PIB per capita pouco superior a 50% da média comunitária, tendo crescido desde então acima dos 70%. Querem comparar o país com escudo com o Portugal de hoje? Era melhor em quê? Havia desemprego, inflação, juros altos, salários em atraso. Melhor em quê? E ao que voltaremos no dia em que, recuperado o amado (e não assim tão velhinho) escudo, sucessivas desvalorizações empobrecerem o país como fizeram tantas vezes ao longo da nossa História, pondo-nos ainda mais longe dos tais países ricos que alegadamente nos exploram dentro da UE (coisa que não farão quando estivermos fora, claro – isto é uma ironia)?

Claro que é preciso aprofundar a integração europeia para criar condições de sustentabilidade da zona euro. É preciso agora, como era aquando da sua génese, como era até em 1970, no tempo do relatório Werner. Isso significa menos soberania dos Estados individualmente – mais união (sim) política, mas sem perda de independência – e maior racionalidade do espaço europeu, reforçada coerência da zona euro e o cumprimento das promessas que contém. Permitam-me mais uma vez ser irritante, esquecer a modéstia devida e citar-me (e a Isabel Ucha, que comigo escreveu em 1999 o livro chamado “Como viver com o euro”): “(a resposta aos choques assimétricos) talvez esteja no federalismo fiscal (redistribuição entre regiões ou países) de concretização ainda incerta e distante, ou num efeito de estabilização a exercer pelo orçamento da União, através de um sistema de “compensações” ou garantias inter-regionais, de natureza redistributiva. Para isso, o orçamento comunitário teria de crescer mas poderia representar uma alternativa clara ao défice de mobilidade na EU”. Qual é a novidade, repito?

E não sendo novidade, também é facto que está feita boa parte do caminho da integração, logo da resolução dos defeitos da concepção da zona euro. Como escreveu Alberto Gallo do Bank of Scotland, a zona euro está cada vez mais unida, com união bancária (ainda incompleta, é certo), união financeira (a meio caminho), união orçamental (a fazer-se) e até com a prometida compra de títulos da dívida soberana e sua mutualização (parcial, nos 20% assumidos pelo BCE do Quantitative Easing). Pediam solidariedade europeia? Pediam injecções de dinheiro “à americana”? Pediam a diminuição do preço do euro para beneficiar os deficitários? Check, check, check. Quando a crise começou e sobretudo a partir daquilo a que chamo o tempo dos resgates (2011), nada do que desde então se fez era previsível. Muitos eurocépticos (contra o euro, pelo menos), previram então a saída da Grécia – e de Portugal – e a desagregação iminente da zona euro e da própria União. Já lá vão 4 anos, eles continuaram a prevê-la a cada sinal de crise, muito mudou mas a união não se desagregou. A Europa, quer queiram quer não, está unida. A Alemanha, tão e sempre odiada e apontada como responsável pela crise, continua a ser o travão contra os excessos e as euforias induzidas pelos Syrizas do dia, ainda que continue a ceder sempre que é preciso – sempre que a Europa precisa. Ou alguém acredita que muitas das decisões a que acima aludo seriam possíveis sem a anuência, mesmo que discreta, da Alemanha?

Por tudo isto, e muito mais que aqui não cabe, não acredito que a Grécia saia do euro. As sucessivas reuniões do Eurogrupo e do Conselho Europeu ajudarão a clarificar esse ponto (talvez não definitivamente). Mas mesmo que saísse, algo que não pode ser excluído por ninguém, ainda menos acredito que Portugal saia. E não, o euro não vai acabar. Ao contrário do que alguns dizem e parecem pensar, sem moeda única o mercado interno europeu tem poucas hipóteses de se manter. E sem mercado interno não há União Europeia.

Sem União Europeia… bem, a História tem a resposta. E até o presente a tem, nas fronteiras leste e sul do continente. A tragédia é grega mas, à força de se repetir, corre o risco de se transformar numa farsa europeia. É caso para desejar boa sorte a todos nós.