Devo dizer que não tenho qualquer afinidade com a cultura alemã (como tenho por exemplo com a cultura britânica ou até com a francesa). Não falo alemão, não visito frequentemente a Alemanha e sinceramente não tenho uma curiosidade especial pelo país (excluindo a sua História). No entanto, os ataques contra a Alemanha durante os últimos anos são incompreensíveis e injustificados. E as insinuações ao passado nazi para atacar o governo alemão ou a chanceler Merkel são chocantes e absolutamente irresponsáveis. Há muita gente que deveria ser responsável e anda a brincar com o fogo.

Comecemos pela história alemã desde 1945. A transformação profunda da Alemanha foi o maior feito da política europeia e da política externa norte-americana durante a segunda metade do século XX. Duvido que haja na Europa um sistema democrático superior ao alemão – haverá equivalente, como o britânico. Uma ordem constitucional federal com uma distribuição de competências que evita concentrações de poder perigosas. Em comparação com o federalismo alemão, o centralismo francês torna a França um país oligárquico. Simultaneamente, o federalismo alemão tem evitado problemas de separatismo, como no Reino Unido e em Espanha.

A Alemanha construiu igualmente instituições e regras fortes, legítimas e estáveis. A ordem jurídica goza de uma autoridade indiscutível e os tribunais são respeitados. Os principais partidos políticos são responsáveis e capazes de formar grandes coligações e de compromissos construtivos. Esta capacidade de entendimentos interpartidários explica, em larga medida, a eficácia da política europeia da Alemanha. E existem ainda pluralismo intelectual e respeito por liberdades e direitos fundamentais.

O sistema democrático alemão constitui certamente um exemplo para a maioria dos países europeus, sobretudo para aqueles que abandonaram regimes autoritários durante a segunda metade do século passado, como Portugal (e muitos outros). Não seria nada mau para o nosso país se daqui a dez anos a nossa democracia estivesse mais próxima da alemã. Quem não for capaz de reconhecer este ponto básico, ou ignora a realidade ou é vítima de cegueira ideológica.

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Quanto à crise financeira, já é mais do que tempo de sermos honestos. É óbvio que o governo alemão defende o interesse nacional. Tal como fazem todos os outros governos europeus. Aliás, o eleitorado alemão não aceitaria um governo que não prosseguisse os interesses do país. É verdade que o euro beneficia a economia alemã. Mas alguém estaria à espera do contrário? Deveria a Alemanha estar numa união monetária que prejudicasse a sua economia? Calculo que quando o Portugal aderiu ao euro foi porque existiu um consenso de que iria beneficiar a sua economia (espero que ainda exista esse consenso). E o mesmo aconteceu com todos os outros países que aderiram ao euro. As acusações de que Berlim defende os seus interesses ou beneficia do euro não fazem qualquer sentido. Só mostram a ligeireza de quem as faz.

Também é verdade que os últimos governos alemães têm sido exigentes em relação ao respeito pelas regras da Zona Euro. Não custa muito reconhecer que qualquer iniciativa entre um grupo de países só funciona se todos respeitarem as regras comuns. E Merkel, desde o início da crise do euro, tem criticado tanto o governo de Schroeder por não ter respeitado as regras da união monetária em 2003, como critica os outros países que não o fazem agora.

Mas o pior de tudo é a perda de confiança da Alemanha – e de outros países – em alguns dos seus parceiros europeus. Os alemães não acreditam que haja uma vontade genuína em fazer reformas, em diminuir as dívidas, em combater a corrupção, os interesses instalados e o arbitrarismo. E se formos honestos, devemos reconhecer que o comportamento de muitos dá razão à Alemanha. Não sinto algum prazer em dizer isto. Mas receio que seja a verdade. No nosso país, temos um antigo primeiro-ministro na prisão, suspeito de ter enriquecido ilicitamente durante o tempo que chefiou o governo. E um PM que recebeu a confiança absoluta (maioria absoluta) dos portugueses. Alguém julga que isto não tem consequências? Alguém vive na ilusão que os outros países não reparam e não levantam questões? O que diriam os portugueses – e outros – se Merkel um dia fosse investigada por suspeita de enriquecimento ilícito durante o seu tempo na Chancelaria?

Para atacarmos os outros, devemos ser muito rigorosos com os nossos comportamentos. Caso contrário, as nossas críticas não passam de disparates infantis. Uma doença que afectou muitos em Portugal nos últimos anos.