Porque é que os cidadãos estão a eleger pessoas com o perfil de Donald Trump, votam pela saída do país da União Europeia contra toda a racionalidade e acreditam que há caminhos fáceis para resolver problemas de sobreendividamento, como em Portugal ou na Grécia? As respostas não são fáceis, podem apenas colocar-se hipóteses.

O Brexit, a eleição de Donald Trump e a ascensão dos populismos em geral, com promessas milagreiras para os nossos problemas, são realidades que correspondem a faces da mesma moeda. Os globalizados esqueceram-se do resto da sociedade e viveram numa bolha. Muita conversa sobre justiça social com poucos actos e uma enorme arrogância no discurso, a raiar a censura, e que impediu ver a maioria silenciosa que se estava a formar. Uma maioria que primeiro teve vergonha dos seus valores politicamente incorrectos até que alguém os começou a gritar e recebeu os seus votos.

Estamos em choque ou, melhor dizendo, o grupo da sociedade que tem sido beneficiado pela globalização, a esmagadora maioria urbana e com um elevado nível intelectual, nem quer acreditar no que se está a passar. Começamos com o choque do Brexit e iniciamos 2017 no limiar do pavor.

A lógica que formata o mundo actual parece estar desmoronar-se. O raciocínio lógico, baseado em factos, e a valorização da verdade, por oposição à mentira, são completamente desprezados pelos protagonistas políticos que estão a vencer, a maioria sem carreira na política. E que interpretam esse medo dos deserdados da globalização, dos que se esconderam atrás do politicamente correcto, sem que sejam minimamente castigados.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

O caso da tomada de posse de Donald Trump é um dos mais caricatos exemplos. Assistimos a acusações aos jornalistas de manipularem informação, por parte do porta voz da Casa Branca, Sean Spicer, na sua primeira conferência de imprensa, apesar de todos os dados e imagens mostrarem exactamente aquilo que se tinha relatado: a participação popular na tomada de posse de Trump tinha sido inferior à de Obama.

Por que é que alguém insiste numa narrativa facilmente desmentida por factos? Podiam ter usado outras estratégias, igualmente alinhadas com o seu perfil, como dizer que os eleitores de Trump são diferentes, têm de ganhar a vida, não podem ir a tomadas de posse. Optou-se mais tarde, já na fase de defensiva, por dizer que Spicer estava apenas a apresentar “factos alternativos”, sem que se saiba em que diferem de mentiras.

Conspirativamente, podemos admitir que a estratégia é coerente com o populismo e com o que alguns grupos de pessoas acreditam ser a realidade: que os jornalistas em geral não relatam o que se passa. (Este é o momento de alertar o leitor que sou jornalista). Os dados (e não informação) que proliferam na internet e em particular nas redes sociais têm alimentado a ideia de que os jornalistas não contam o que sabem ou são tendenciosos – sendo esta última acusação mais frequente entre os que estão ligados a partidos políticos.

Boa parte dos cidadãos não percebe a diferença entre informação – que só tem essa designação quando o que é transmitido é confirmado ou comprovado – e material que na maioria dos casos não passa de boatos, manipulação ou contra-informação. Sempre existiram boatos. A diferença é que hoje em dia chegam rapidamente a um maior número de pessoas e são mais facilmente confundidos com notícias, viabilizando sua utilização pelos populistas.

O caso da conferência de imprensa sobre a tomada de posse de Trump pode perfeitamente integrar-se numa estratégia de descredibilização da informação para que a manipulação faça o seu caminho. Gideon Rachman escrevia no Financial Timess, sob o título “Truth, lies and the Trump administration”, que o jornalista da BBC ria-se, enquanto relatava o que dizia a Casa Branca, sobre a participação na cerimónia de tomada de posse de Trump. Não devia rir, “deveria chorar”, acrescenta, porque aquilo a que assistimos foi à “destruição da credibilidade do governo americano”. Mais à frente considera que esta dependência de “grandes mentiras” tem implicações perigosas para a segurança global.

Não se pode estar mais de acordo com o que escreve Rachman, um exemplo entre muitos os que se têm pronunciado sobre estes primeiros dias da América, dirigida por Donald Trump. E escreveu assim antes de termos assistido à decisão de limitar a entrada nos Estados Unidos de cidadãos com origem em sete países – Síria, Iraque, Irão, Sudão, Líbia, Somália e Iémen -, de tal forma que gerou manifestações em algumas cidades e um coro de criticas das empresas tecnológicas.

Mark Zukerberg do Facebook foi um dos primeiros a opor-se à decisão de Trump sobre imigração. Mas seguiu-se a Google, o Twitter, a Microsoft, a Apple e até a Airbnb. Neste momento já se identificam dois grandes grupos de empresários nos Estados Unidos. Contra Trump estão as tecnológicas – que dependem da mão-de-obra do mundo – e algumas empresas do sector do retalhista – dependentes de importações. Com Trump estão os que esperam ganhar com a promessa de investimento público. Uma espécie de confronto entre transaccionáveis e não transaccionáveis, quase mimetizando a sociedade dual em que parecemos viver: os vencedores e os vencidos da globalização.

A vitória do nacionalismo, do monoculturalismo e do proteccionismo só se obtém através da mentira e da derrota do racionalismo e do conhecimento. Que se consegue atraindo para essa ratoeira os que sentem que estão piores por causa da abertura das fronteiras. Foi esse o caminho que seguiram com sucesso os que fizeram campanha pelo Brexit, sem qualquer vergonha nem arrependimento pelas mentiras que disseram. Foi essa também a via seguida por Donald Trump e os seus apoiantes. Os dois acontecimentos estão unidos pelo facto de os protagonistas terem vindo de fora da carreira política e pela disponibilidade dos eleitores em acreditarem em mentiras.

Será que ainda se consegue parar esta onda proteccionista? Na realidade não sabemos. Estaremos condenados a creditar em mentiras e a regressar a eras obscurantistas do passado se, como diz José Miguel Pinto dos Santos sobre o filme “Silêncio” no seu artigo no Observador “a nossa grande falha civilizacional hoje” for “epistemológica”, ou seja, “já não se acredita que a realidade seja perceptível objectivamente”. Ou poderemos entrar numa fase de ainda maior fúria dos eleitores, que se deixaram embalar pelos populismos, se os novos protagonistas políticos quebrarem as suas promessas, esquecendo-se de os proteger das perdas que sentem com a globalização.

O que as elites, os vencedores deste mundo global, não podem nem devem fazer é passar um atestado de menoridade a quem votou no Brexit ou em Trump. O que em Portugal também não podemos esquecer é que não estamos imunes a estas tendências. Portugal está obviamente incluído neste universo, no modelo moderado que caracteriza o País. Para já, o populismo português está circunscrito às matérias monetárias e financeiras, à ilusão de que podemos ver o nosso rendimento a aumentar sem a economia crescer, que o Estado tem capacidade financeira para tudo ou que a culpa está no euro.

Manter o mundo como o conhecemos, um mundo de muitas liberdades, exige vigilância adicional mas também serenidade seguindo um pouco “a Trump-era guide to ignoring all that noise” da autoria do jornalista da Bloomberg Albert R. Hunt. E procurar respostas para a pergunta: porque estão os eleitores a dar a vitória a quem promete o um mundo que o conhecimento que temos demonstra que será menos livre e próspero? A desigualdade em todas as suas vertentes, do rendimento à qualidade de vida, é a resposta mais provável.