Tudo começou com o fecho das fronteiras. Nesse tempo, mais ou menos nesse tempo, o medo invadiu a Europa. E espalhou-se. O medo invadiu a Europa e as fundações da antiga e laboriosamente construída civilização foram abaladas nos seus alicerces.

O medo invadiu a Europa e a Europa começou a desagregar-se.

Os europeus disseram: vêm aí os chineses. E fecharam as fronteiras para se proteger dos chineses. Os europeus disseram: vêm aí os russos. E fecharam as fronteiras para se proteger dos russos. Os europeus disseram: vêm aí de novo a recessão e a miséria. E fecharam as fronteiras para se proteger delas (ah ah ah, riu-se o velho pantomineiro). Os europeus disseram: vêm aí os refugiados. E construíram muros para se proteger, mas como eles continuassem a chegar confiscaram-lhes os bens (isso começou na civilizada Dinamarca), e como eles continuassem a chegar reenviaram-nos para os campos da morte de onde tinham fugido, e teriam descansado se não se desse o caso deles, os refugiados, continuarem a chegar. Os europeus disseram: vêm aí os muçulmanos. E fecharam as fronteiras. Mas como alguns muçulmanos tinham dinheiro para gastar no museu do Mundo, deixaram-nos entrar e taparam as estátuas nuas (isso foi na culta Itália) e proibiram o vinho de correr nos copos europeus para não ofender os euros dos muçulmanos. Os europeus disseram: vem aí o Outro. E fecharam-se dentro das suas fronteiras, entrando lenta e inexoravelmente na noite escura.

Será assim, amiga: um certo dia/Estando nós a contemplar o poente/Sentiremos no rosto, de repente/O beijo leve de uma aragem fria.

Diria Vinicius aos europeus: certo dia uma aragem fria virá lembrar-vos que o Mundo é largo e existe, o Mundo largo lá fora existe e já não é vosso, outros povos virão reclamar o que é seu; e cobiçarão as vossas riquezas; e desafiarão a vossa Civilização. Outros povos quererão ser como vocês, europeus, viver como vocês, possuir as vossas riquezas, para isso procurando vencer-vos pelo medo. E o medo vos vencerá.

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Tu me olharás silenciosamente/E eu te olharei também, com nostalgia/E partiremos, tontos de poesia/Para a porta de treva aberta em frente.

Poesia, nostalgia, silêncio, trevas. Tanto faz. O velho pantomineiro percorreu as planícies, os planaltos, as cidades do velho continente e soprou loucura sobre as flâmulas da civilização europeia. A Europa, que nos 50 anos anteriores laboriosamente construíra um edifício de valores sobre as cinzas de mais uma guerra civil, a Europa das quatro liberdades, do mercado interno, da livre circulação de pessoas, de Schengen, a Europa das políticas comuns, do euro, da solidariedade e da subsidiariedade, a Europa das pessoas, dos cafés e das ideias, a Europa a que chamaram União, feita para acabar com as guerras, essa Europa doce como uma brisa de verão, começou a desagregar-se. A entrar, tonta de poesia, ébria dos seus maiores, os seus egrégios avós, consolada nas ruínas da sua gloriosa memória, na porta de treva aberta em frente.

Foi assim (lição de História): a crise conhecida como dos refugiados, com epicentro em 2015, levou vários países europeus a pôr em causa o princípio fundamental da livre circulação das pessoas no espaço europeu. Rejeitaram o acordo de Schengen e a relação entre si, e construíram muros, barreiras de arame farpado, normas proteccionistas, egoísmos nacionais. Nos anos seguintes, desmantelaram a união monetária, acabando com o euro, a moeda única criada para disciplinar os mercados e acabar com esse “imposto iníquo e universal” nascido dos câmbios e respectivas incertezas; nesse tempo, também, um episódio conhecido como “brexit” retirou da companhia uma antiga Nação, Reino desunido com a imediata saída da Escócia. Seguiram-se, em carambola, outras fracturas – em Espanha (Catalunha), em Itália (Padânia), em França (Córsega). Isso foi o começo.

Ao transpor as fronteiras do Segredo/ Eu, calmo, te direi: — Não tenhas medo/ E tu, tranquila, me dirás: — Sê forte.

Tiveram medo. Fecharam-se na sua velha fortaleza. Convocaram monstros antigos, a guerra civil e a opressão, o horror ao “estranho”. Mas as fronteiras reconstruídas não puseram termo ao afluxo de refugiados e emigrantes económicos. O terrorismo até cresceu, pois muitos terroristas já viviam em solo europeu e a desagregação da política europeia de segurança, o fim dos mandados de busca e captura, da cooperação entre polícias, serviços de informação, procuradorias, dificultou a luta contra as ameaças transnacionais. Entregues a si próprios, os Estados nacionais recorreram à violência para se defender e o sangue correu abundante nos “boulevards” da Europa.

Extinto o euro, instalada a zizania, o mercado interno, último baluarte da construção europeia, pouco mais sobreviveu. Quando as instituições europeias, em vésperas de fechar portas, proclamaram o fim do mercado comum, já cada país geria livremente o seu mercado. Seguiu-se uma prolongada recessão, o avolumar das desigualdades, o regresso dos ressentimentos nacionais.

E como dois antigos namorados/ Noturnamente triste e enlaçados/Nós entraremos nos jardins da morte.

Vinícius escreveu este poema em Montevideu em julho de 1960: meio século depois, sem nada que os unisse, sem a visão promissora e solidária de uma Europa unida, os antigos namorados afastaram-se; alguns, como sempre, renegaram a democracia, recuperaram velhos hábitos; e foram-se fazendo inimigos de um lado e de outro; o coração da Europa, e depois as suas periferias, entraram tristemente enlaçados nos jardins da morte. A guerra voltou aos campos ainda vermelhos do continente.

O Medo venceu. O velho pantomineiro ainda não parou de rir.

PS. Para muitos dos leitores que tantas vezes levam a sério as minhas metáforas, sublinho com simpatia que esta parábola é apenas um cenário: não o único, muito menos o que desejo. Creio firmemente que seria para os nossos filhos e netos uma terrível herança: a Europa da União, com os muitos defeitos que tem, é dos mais extraodinários empreendimentos políticos, económicos e sociais a que o ser humano se dedicou. Terminá-lo é condenar os europeus a regressar a lugares muito feios, que julgávamos proscritos para sempre. A escolha está nas mãos de todos nós. Está de forma muito clara nas mãos dos políticos. A escolha é entre Civilização e Barbárie. Acredito nisso firmemente.