Esta semana, a Comissão Europeia propôs-se tirar Portugal da lista dos países com défices excessivos, e arranjou-nos assim mais um problema. Aliás, dois problemas. O primeiro é este: a que governo dar os parabéns? A este, em cujo reinado o défice encolheu de 4,4% (2015) para 2,1% (2016), ou ao anterior, que o reduziu dos socráticos 11,2% (2010) para 4,4% (2015)? O presidente da república, numa imitação irónica de Salomão, julgou prevenir a discórdia dando parabéns a todos.
O segundo problema é mais complicado: é descrever o que mudou. Enquanto foi exibido na jaula dos défices excessivos, Portugal nunca de facto sofreu, da parte da Comissão Europeia, mais do que advertências. Ora, o que faz a Comissão depois de rever o estatuto de Portugal? Continua a fazer advertências. Mais: anuncia que Portugal vai passar em breve por novas dificuldades orçamentais. Mais ainda: promete que, como sempre, a Comissão será tolerante. Ou seja: tudo como dantes.
O défice do Estado português representa duas coisas. No contexto da zona Euro, o défice é a medida do nível a que os Estados do norte da Europa estão dispostos a financiar o Estado português. Para um país sem acesso aos mercados a não ser debaixo do guarda chuva do BCE, o défice é o índice da sua dependência. É por isso que o seu valor há de ser o que a Comissão Europeia disser que tem de ser, por mais que em Portugal muita gente finja não compreender porquê.
Do ponto de vista da história dos últimos cinquenta anos, o défice é o sintoma de uma dificuldade que não está resolvida: o desequilíbrio entre, por um lado, os compromissos que o poder político assume para controlar a sociedade e, por outro, a capacidade dos portugueses para criarem riqueza e a colocarem à disposição do Estado. Essa dificuldade não é de agora. A integração europeia, iniciada com a adesão à EFTA (1960) e com os acordos com a CEE (1972), transformou uma sociedade rural numa sociedade urbana, o que resultou num enorme salto de expectativas. Rapidamente, e já antes do 25 de Abril de 1974, se sentiu a pressão para importar os modelos das sociedades ricas do norte da Europa, mesmo não existindo a correspondente base produtiva. Os governos tiveram dois meios para gerir os desequilíbrios: a inflação, que o Euro desactivou, e a captação de recursos no exterior, nomeadamente através do endividamento, que o Euro facilitou. Agora, sem a inflação, resta o financiamento externo. É o ponto onde estamos.
Há alternativa? Há: a sociedade portuguesa provou, com a subida das exportações durante o ajustamento, ser capaz de procurar e aproveitar oportunidades. Mas as “reformas” – isto é, o desmantelamento dos condicionamentos que o Estado impõe ao investimento e ao trabalho – iriam incomodar demasiados grupos de interesse ligados ao poder. São, por isso, tabu. À oligarquia dá mais jeito acreditar que a prosperidade se deve exclusivamente à distribuição de dinheiro pelo Estado. E para levantar esse dinheiro no BCE, está disposta a tudo. Por enquanto, cortou o investimento e os consumos do Estado.
Ontem, num artigo de jornal, o ministro das Finanças sobrevoou as “reformas estruturais”, para rapidamente aterrar na Europa: “temos de enfrentar, na Europa, os desafios com que nos deparamos”. Reparem: na Europa. As “reformas” mencionadas são a União Bancária, o Fundo Europeu de Garantia de Depósitos, etc. O plano é claro: viabilizar o regime português, não através da iniciativa dos cidadãos em Portugal, mas das transferências europeias, confiando na velha complacência de Bruxelas. Daí, a obsessão com o défice, que é a grande contrapartida exigida pela Comissão. E daí, também, que tenha desaparecido aquela vida toda que antigamente havia para além do défice.