2017 não é apenas o ano do centenário da revolução comunista de 1917, mas também do centenário da criação do principal mecanismo repressivo do regime soviético: a polícia política.
VTCHEKA, TCHEKA, OGPU, NKVD, KGB, FSB/SVR. Estas são algumas das muitas siglas russas que teve a polícia política soviética ao longo dos últimos cem anos de existência, mas a sua função principal, recorrendo a métodos mais ou menos sangrentos, foi apoiar a ditadura comunista até 1991. Depois, foi ficar na sombra à espera de melhores dias, e, presentemente, controlar o espaço político e social na Rússia.
Criada a 20 de Dezembro de 1917 por Felix Dzerjinski, nobre de origem polaca, como “órgão da ditadura do proletariado”, a VTCHEKA (Comissão Extraordinária de Toda a Rússia para a Luta com a Contra-revolução e a Sabotagem”) foi o principal instrumento do “Terror Vermelho”, conjunto de medidas repressivas realizadas pelos bolcheviques durante a Guerra Civil na Rússia contra todos os que se opusessem à ditadura comunista.
(É verdade que a VTCHEKA/TCHEKA desenvolveu trabalho com vista à reintegração de crianças órfãs e abandonadas, que eram da ordem dos muitos milhões, o que levou os críticos dessa polícia política a dizer com sarcasmo que “Dzerjinski gostava muito de criancinhas, só não gostava de seus pais”.)
Periodicamente, essa instituição repressiva mudava de nome, mas a luta pelo poder levou José Estaline a empregá-la contra os seus adversários dentro e fora da Rússia, estivessem onde estivessem. Utilizando carrascos domesticados como Iagoda, Ejov e Béria, o NKVD (Comissariado Povo para Assuntos Internos) da União Soviética liquidou todos os potenciais inimigos “brancos” (como eram conhecidos todos os não comunistas que se opunham ao regime soviético), mas também seus antigos camaradas, sendo o caso mais “exemplar” o assassinato de Lev Trotski no México.
É esta organização que cria o Gulag (abreviatura russa de Direcção Principal de Campos), uma rede de campos de concentração espalhados por todo o país onde a mão de obra grátis dos reclusos era utilizada nas mais diversas actividades. Por estes “campos de reabilitação pelo trabalho” (segundo a definição dos comunistas) passaram dezenas de milhões de pessoas inocentes, muitas das quais foram sepultadas em valas comuns da Sibéria ou do Extremo Norte do país.
Numerosas obras literárias e científicas foram escritas sobre estes campos de concentração, que só diferem dos nazis por não estarem equipadas com câmaras de gás. Leia-se os “Contos de Kolimá”, de Varlam Chalamov, ou o “Arquipélago de Gulag”, de Alexandre Soljenitzin.
Após a morte de Estaline, em Março de 1953, Béria, tal como anteriormente Iagoda e Ejov, acabou com um tiro na nuca, da forma mais ignóbil. Ao recolher material para uma biografia do último carrasco de Estaline, que deverá ser publicada em 2018, deparei-me com este relato do homem que o executou, o general-corronel Pavel Batitzki: “Levámos Béria por uma escada para um subterrâneo. Ele cag… Um cheirete. Foi aí que o matei a tiro como se mata um cão”.
O NKVD mudou de nome, os métodos repressivos deixaram de ser tão cruéis, mas o KGB (sigla russa de Comité de Segurança do Estado a partir de 1954) continuou a ser um dos principais pilares da ditadura comunista até ao seu fim em 1991.
Quando foi eleito secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética, alguns viram em Iúri Andropov, que dirigiu o KGB durante muitos anos, um homem virado para a reforma do caquético sistema soviético, mas o pouco que conseguiu fazer, pois ocupou o cargo máximo no seu país apenas durante ano e meio, ia no sentido contrário, na solução de problemas económicos e sociais através de medidas repressivas e administrativas.
Mikhail Gorbatchov não conseguiu controlar os serviços secretos durante o período em que dirigiu a URSS (1985-1991), o que lhe poderia ter custado a vida. Entre os homens que o tentaram derrubar em Agosto de 1991, estava Vladimir Kriutchkov, dirigente do KGB.
Com a desintegração da União Soviética e do “campo socialista”, muitos dos países que se libertaram do comunismo optaram por reformar profundamente os seus serviços secretos, mas, na Rússia, pouco ou nada foi feito nesse sentido.
Muitos agentes e bufos do KGB soviético apressaram-se a aderir à economia de mercado, oferecendo os seus serviços aos oligarcas que tomavam o poder na Rússia dos anos 90, ou utilizando as suas ligações para criarem negócios.
Outros, como é o caso de Vladimir Putin, actual Presidente russo, optou por trabalhar para o “democrata” e “liberal” Anatoli Sobtchak, presidente da Câmara de São Petersburgo. Quando o seu chefe foi acusado de corrupção, Putin, que então já trabalhava na Administração de Boris Ieltsin, tudo fez para o livrar da prisão e enviá-lo para Paris. O próprio foi acusado de corrupção e desvio de dinheiros públicos enquanto dirigia o Departamento de Cooperação Internacional da Câmara de São Petersburgo, mas nunca nenhuma investigação foi iniciada.
Outros agentes do KGB ficaram na organização à espera de melhores dias, decisão acertada porque Boris Ieltsin, primeiro Presidente da Federação da Rússia, pouco mais fez do que mudar o nome à organização: MSV (Serviço de Segurança Inter-republicano)), Ministério da Segurança, Serviço Federal de Contra-Espionagem e, finalmente, em 1995, FSB (Serviço Federal de Segurança). A actividade externa dos serviços secretos passou para as mãos do SVR (Serviço de Reconhecimento Externo).
A desforra dos antigos e actuais agentes dos serviços de segurança russa começou com a chegada ao poder de Vladimir Putin em 1999. Empurrado para sucessor de Boris Ieltsin no Kremlin pelos oligarcas, o actual dirigente russo rapidamente lançou um ataque contra os novos-ricos, prendendo alguns, obrigando outros a emigrar. Alguns dos que saíram do país acabaram por morrer em circunstâncias pouco claras no Ocidente. Mais uma das marcas da Lubianka (edifício no centro de Moscovo que alberga a polícia política e é um dos seus símbolos mais conhecidos).
Mas enganam-se os que consideram que uma das facetas mais positivas da actividade política de Putin foi pôr fim à oligarquia na Rússia. Ele apenas a substituiu por homens saídos dos serviços de segurança, conhecidos por “siloviki”, e por amigos da infância e da juventude. São estes que actualmente dirigem a Rússia.
Sedentos de poder, os “siloviki” controlam não só o poder político, como também o económico na Rússia. E não perdoam aos que se atravessam no seu caminho. Por exemplo, veja-se a ascensão fulgurante de Igor Setchin, antigo espião soviético em Angola e Moçambique e hoje um dos homens mais poderosos do seu país, controla a Rozneft, a maior petrolífera russa. Após um processo judicial pouco transparente, Alexei Uliukaev, antigo ministro da Economia, foi, na semana passada, condenado a oito anos de prisão por tentar subornar Setchin! Este foi várias vezes chamado a depor pelo tribunal, mas não se dignou a comparecer.
No campo externo, só os que não querem não vêm a agressividade com que trabalham os serviços secretos russos, nomeadamente em Portugal. A “guerra híbrida” é apenas uma das componentes.
P.S. Não posso deixar de realçar a notícia de que os serviços norte-americanos (CIA) ajudaram as autoridades russas a evitar atentados terroristas de grande dimensão em São Petersburgo, que poderiam ter provocado enormes danos materiais e humanos. Se não se trata de algum truque propagandístico organizado por Putin e Trump, é um bom exemplo de cooperação internacional no combate ao terrorismo.