Não é tão picante quanto discutir cartazes parvos do BE. Nem é tão fracturante quanto a eutanásia. E muito menos tem o encanto da cerimónia dos Óscares. Mas hoje o ministro da Educação vai ao parlamento defender o seu Orçamento e, para além das dúvidas já referidas, é necessário de um exercício de escrutínio que expõe como uma mentira se pode tornar verdade se repetida muitas vezes sem contraditório.

Primeiro, toda a esquerda sentenciou que o governo PSD-CDS andou a destruir a escola pública para favorecer as escolas privadas – “degradar, degradar, degradar a escola pública e, no final, tira dinheiro da escola pública e transfere para as escolas privadas com o aumento dos contratos de associação” acusou João Galamba, dirigindo-se a Passos Coelho no debate de apresentação do Programa do XX Governo (2015.11.09). Depois, quando o actual governo apresentou um orçamento para a educação que aplica ainda mais cortes na escola pública e amplia a verba para o ensino privado, o ministério da educação veio explicar que tudo se deveu a um golpe do anterior governo – a direita teria negociado à pressa uns contratos plurianuais para impor sobre o PS mais financiamento aos privados. Ora, acontece que o que disseram é mentira. E que o que explicaram também.

ahc-OBSERVADOR-2016.02.29-grafico1 Gráfico despesas educação

Esqueça-se a propaganda e olhe-se aos factos que, de resto, são simples de alcançar. O financiamento do Estado aos contratos de associação diminuiu ininterruptamente desde 2011 (e até antes), como é observável no gráfico 1, construído a partir da informação orçamental oficial do ministério (consultável aqui e na nota explicativa divulgada na sexta-feira, relativa a 2016 – página 13). Ou seja, por um lado, PSD-CDS não aumentaram o financiamento aos contratos de associação – e, portanto, as acusações de João Galamba e de outros socialistas são falsas. Por outro lado, o actual governo PS também não herdou um favorecimento chorudo aos colégios privados, uma vez que a verba para os contratos de associação mantém a tendência descendente em 2016 – e, portanto, as explicações do ministério são igualmente falsas. É lamentável que se chegue a isto e que se opte pelo engano em vez de pelo esclarecimento.

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O que explica, então, as notícias de que os privados irão receber mais dinheiro do Estado em 2016? Simples: o modelo de financiamento do ensino artístico especializado. De facto, em 2016, as transferências para o ensino artístico passaram a ser asseguradas directamente pelo Orçamento de Estado, em vez de por fundos comunitários, o que obrigou ao reforço de cerca de 50 milhões de euros na dotação orçamental dos “contratos de patrocínio” – montante que não é superior ao que aquelas escolas recebem habitualmente. É verdade que a opção foi do anterior governo, mas refira-se que foi uma opção dezenas de vezes reclamada pelas escolas e pelos partidos de esquerda (por exemplo, neste projecto de resolução do BE), no sentido de se ultrapassar os inadmissíveis atrasos anuais no processamento dos fundos e evitar que os profissionais do ensino artístico ficassem sem salário durante meses.

Com toda a simplicidade, é apenas isso que está em causa no acréscimo das dotações para o ensino particular. Bem diferente do que a equipa ministerial garantia, há 20 dias, em tom conspirativo, quando apontou que esse aumento resultava “total e exclusivamente da provisão necessária para fazer face aos compromissos assumidos pelo XIX Governo Constitucional no âmbito dos contratos plurianuais em vigor que este decidiu assinar em final de mandato”. Uma referência aos contratos de associação, uma vez que, quanto ao ensino artístico, a equipa ministerial especificou que as alterações tinham uma “menor dimensão orçamental”. Ora, afinal, foi ao contrário – a dotação para os contratos de associação diminuiu, enquanto a integração do ensino artístico no Orçamento de Estado explica o acréscimo de transferências para os privados.

Está visto que, no ministério, se levou à letra a velha máxima de não deixar os factos estragar uma boa história. É absolutamente lamentável e não havia necessidade. Até porque já está na altura de se conseguir debater a participação dos privados na rede pública de educação sem fantasmas ideológicos e a partir dos factos. Pode-se ser contra ou a favor dos contratos de associação, considerar o seu financiamento excessivo ou escasso, defender uma ou outra visão da rede pública de educação. E sendo cada uma destas posições legítima e respeitável, nenhuma precisa de ser sustentada em mentiras, conspirações e propaganda – que, neste caso, vieram da esquerda mas também as há à direita.

A um ministro pede-se que dê o exemplo, que foque o debate nos factos e que informe adequadamente o país sobre a área que tutela. Não foi o que aconteceu. E, enquanto a opção for pela caça às bruxas, o debate público não sairá das trincheiras.