Quando é que acaba o castigo? Como aqueles meninos irrequietos que são mandados para o quarto mas só pensam em ver chegada a hora de repetir as mesmas tropelias, assim está o país. Pior: instalou-se a percepção de que “o castigo” já acabou e que, agora, podemos regressar à vida de sempre. Há um ambiente de descompressão no ar que não é do Santo António e do regresso do calor e da sardinha: é dessa ideia bem portuguesa e bem antiga de que tudo se há-de compor sem esforço, porventura até sem acção e sobretudo sem que nada mude.
A decisão do Governo de não fechar o programa de resgate e não receber a última tranche da ajuda externa foi recebida com um encolher de ombros apesar de ser apenas a parte visível de um enorme iceberg de dificuldades. É certo que o Governo pode tomar essa decisão porque dispõe de uma almofada que foi amealhando nestes três últimos anos e porque, nos mercados, Portugal já consegue financiar-se a juros semelhantes aos da troika (mas mesmo assim um pouco mais elevados). Óptimo. Mas o Governo também só o fez por um conjunto de más razões que todos, maioria e oposição, parecem empenhados em fazer esquecer. A principal dessas razões é que, neste momento, falta a bússola para saber como, daqui até 2019, no tempo desta maioria e e no tempo da próxima, alcançaremos os 6,7 mil milhões de euros de conbsolidação orçamental que ainda nos faltam. Todos gostariam de se fazer esquecidos, mas esta semana o Banco de Portugal veio recordá-lo preto no branco.
Sejamos claros: teria sido melhor para Portugal fechar o programa de auxílio externo e assinar as correspondentes cartas de compromisso. Saberíamos onde estamos e saberíamos por onde teríamos de seguir. Não o fizemos porque, neste momento, depois da mais recente decisão do Tribunal Constitucional e numa altura em que se espera por outras decisões, ninguém sabe sequer quantos milhares de milhões de consolidação orçamental terão ainda de ser somados aos contabilizados pelo banco central.
Gostasse-se ou não dele, em 2011 e 2012 havia um plano, hoje muito esquecido mas que, na época, chegou a ser explicitado na Assembleia da República pelo primeiro-ministro e pelo ministro das Finanças: o corte dos dois subsídios nos salários da administração pública durariam pelo menos os três anos da troika e criariam a folga necessária para, entretanto, realizar reformas que exigiam mais tempo de maturação que os três meses que mediaram da tomada de posse do Governo ao seu primeiro orçamento.
Esse plano ruiu por causa de decisão do Tribunal Constitucional de Julho de 2012 e, a partir daí, fomos de apalpação em apalpação, de aumento de impostos em aumento de impostos (estes sempre “constitucionais”) e de medida transitória em medida transitória (estas quase sempre “inconstitucionais”). O TC foi fechando praticamente todas as portas a qualquer tentativa de reduzir as despesas do Estado, de tal forma que hoje só se fala de “reforma do Estado” por retórica, pois a impossibilidade, decretada pelos juízes, de dispensar a esmagadora maioria dos funcionários públicos (todos os contratados até 2008) torna qualquer esforço de racionalização da máquina do Estado um mero exercício de estilo.
Estamos assim reduzidos à expectativa de um novo aumento de impostos. É isso que vai acabar por acontecer neste estado em que estamos de ditadura dos juízes, azelhice dos políticos e doideiras das elites. É isso que aconteceu sempre. É disso que já nem a troika nos livra.
Se o Governo não tivesse abdicado da última tranche, dentro em breve teríamos de novo em Lisboa os técnicos da troika a discutir as medidas alternativas. É essa ideia de ter de continuar a prestar contas que nenhum político português suporta. Não suportam os da maioria, porque já celebraram a “libertação”. Não suportam os da oposição, porque sabem que o legado dos compromissos também ficaria para eles.
Prefere-se por isso voltar a um clima de quase ficção. Por um lado, fala-se de “folgas”. É o tema de alguma oposição e, falando com uma ligeireza incompreensível, é também o tema da antiga ministra das Finanças, Manuela Ferreira Leite. Em Portugal falamos de “folgas” e “buracos” com mais frequência do que um cavador ou do que um mecânico.
Por outro lado, fala-se de crescimento. O crescimento vai salvar-nos. A ministra das Finanças diz para não nos preocuparmos com os números do Banco de Portugal, pois a consolidação virá com o crescimento, não com mais cortes. O PS – tanto o PS das manhãs como PS das tardes – também acha que com crescimento acaba com os cortes nos salários e pensões, não aumenta os impostos e ainda regressa ao investimento “na cultura, na ciência e na educação”, tudo isto sem depedir ninguém e continuando fiel ao Tratado Orçamental. É o milagre da multiplicação dos pães, mas sem pães. Nem sardinhas.
É assim que estamos de novo a resvalar para a alegre irresponsabilidade de há alguns anos. Para a crença de que basta baixarem os juros para tudo voltar a correr bem. Para a fé de que qualquer coisa há-de acontecer que volte a salvar-nos.
Deixar o debate público descair para este tipo de consensos moles e politicamente simpáticos é perigoso para o país, perigoso para os partidos da maioria e até perigoso para o PS. Porque não há discursos que mudem as realidades duras, e estas não nos abandonarão tão cedo.
Portugal não deixou de ser um país envelhecido, e isso é uma realidade com que viveremos décadas e que tem como consequência inevitável que, mesmo com governos furiosamente “neoliberais”, os gastos sociais do Estado continuem a aumentar, como aumentaram nos últimos três anos.
Portugal continua a ter uma economia débil, uma economia em que mais consumo representa pouco crescimento mas muito défice externo.
Portugal continua a ser um país de pequenas e grandes clientelas, sejam elas as corporações do Estado ou os empresários de todos os regimes, um país onde se protegem os instalados e se resiste à mais pequena mudança.
Portugal continua por fim a ter um défice estrutural nas contas públicas que, a manter-se a doutrina do Tribunal Constitucional, não pode ser atacado com cortes na despesa, apenas aumentando ainda mais a carga fiscal. Tudo isto num Portugal que tem taxas de impostos que já são das mais elevadas da Europa.
Se isto não é um nó cego, não sei o que é um nó cego. Se isto se resolve com mais do mesmo – mais gasto público à espera de mais crescimento –, então é porque existem gnomos e gambuzinos. Se isto não exige que se perceba que estamos muito longe do fim do esforço de reforma e ajustamento, então é porque somos, irremediavelmente, como o menino incorrigível que nunca aprende nada mas culpa sempre os outros.
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