Há uma fórmula infalível para, no Natal, se receber como prenda o que mais se deseja: ser o próprio a escolher o que os outros lhe oferecem. No final da semana passada, os partidos políticos com representação na Assembleia da República decidiram seguir a regra. E o que é que meteram no seu próprio sapatinho? Uns milhões de euros, à conta do Estado – isto é, de nós.
Na passada quinta-feira, em plenário, os partidos discutiram e votaram um conjunto de alterações legislativas que, primeiro, acaba com o limite para os fundos angariados por partidos e que, segundo, permite aos partidos receberem o IVA de volta. Traduzindo. Os partidos estavam limitados a angariar por ano um máximo de 632 mil euros, não podendo receber doações ou verbas de origens privadas que totalizassem um valor superior. Ora, agora esse limite deixou de existir – podem receber todo o dinheiro que conseguirem angariar. Mais: até agora, a isenção do IVA aplicou-se a bens e serviços directamente ligados à sua actividade política, mas, por decisão dos partidos em causa própria, a isenção passará a aplicar-se sobre todos os bens e serviços adquiridos. Basicamente, os partidos deixarão de pagar IVA. Sempre.
O impacto financeiro desta decisão é tremendo e de grande benefício para os partidos. Veja-se, a título de exemplo, os casos mais flagrantes. De um lado, o PCP há anos e anos que apresenta a Festa do Avante!, que é um festival de Verão, como um evento de divulgação política, de modo a fugir aos impostos. A partir de agora, já não vai ser preciso fingir: todos os habituais custos com o IVA na contratação de serviços de restauração e artistas (entre outros) ficam no bolso dos comunistas, às claras. Do outro lado, o PS está falido e endividado (deve cerca de 20 milhões de euros), e tem inúmeros casos em tribunal para a devolução do IVA. Ora, com estas alterações políticas, o problema do IVA no PS desaparece daqui para a frente: a isenção será total e, imagine-se, até se aplicará aos processos pendentes a aguardar julgamento – ou seja, com as alterações legislativas introduzidas, o PS poderá solicitar a devolução do IVA de pagamentos feitos no passado (antes de a nova lei entrar em vigor) e cuja contestação ficou pendente nos tribunais. O golpe é extraordinário.
Não vale a pena disfarçar: os partidos (PS, PSD, PCP, BE, PEV) legislaram em benefício próprio, amealhando milhões de euros à conta do Estado. E, para fugir ao escrutínio público, fizeram-no da forma mais opaca possível. O processo legislativo correu num grupo de trabalho que, por várias vezes, reuniu à porta fechada – algo excepcional no funcionamento da Assembleia da República. O agendamento da discussão/votação do projecto de lei foi feito em cima da hora, para não chamar à atenção e forçando até a retirada de outras iniciativas legislativas previamente agendadas. E, na exposição de motivos do projecto de lei apresentado à votação, não consta uma única referência às alterações que beneficiam os partidos – apenas se refere o reforço dos poderes da Entidade das Contas, dando a entender que o objectivo era somente esse. Só que, lá está, não foi bem assim. Nas palavras da ex-Presidente da Entidade das Contas (em declarações ao Expresso), “os partidos resolveram uns aos outros os problemas de cada um”, alterando leis orgânicas do Tribunal Constitucional, da Entidade das Contas, do financiamento político e dos partidos políticos. Mais claro era impossível.
Tudo isto foi premeditado. No conteúdo: a partir desta alteração legislativa, os partidos vão receber mais dinheiro, ficar isentos de impostos e resolver situações ainda a aguardar julgamento – tudo no valor de milhões de euros. E na sua calendarização: a alteração surge de surpresa, sem forma de escrutínio público, e no período natalício (quando as atenções estão dispersas). Ou seja, tudo neste processo está errado – o legislar em causa própria, o segredismo, as tentativas de passar com o assunto despercebido. E o mais grave é que funcionou: arrepia o sucesso dos partidos em conseguir que o assunto passasse mesmo despercebido, quando há aqui matéria para legitimar indignação popular. É, portanto, uma vergonha colectiva: uma Assembleia da República que faz isto em completa impunidade só é possível perante uma sociedade entorpecida e pouco exigente. Merecem-se uma à outra.