Mais de 24 horas após a entrega do relatório preliminar da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) à gestão da TAP, é ponto assente que o conteúdo do relatório não corresponde ao que efectivamente se apurou nas dezenas de audições realizadas. A deputada relatora do PS, Ana Paula Bernardo, optou por submeter uma versão dos acontecimentos que se alinha com os interesses do governo e do seu partido, criando factos alternativos, ocultando testemunhos, ignorando evidências e excluindo episódios relevantes e amplamente escrutinados na CPI (tais como a violência no Ministério da Infra-estruturas ou a actuação dos Serviços Secretos na recuperação do computador portátil usado por Frederico Pinheiro). No final, refugiou-se numa argumentação extraordinariamente criativa para defender que não houve ingerência política na gestão da TAP, nomeadamente em casos onde essa ingerência está documentada.

Apesar da sua desfaçatez, este relatório será aprovado, eventualmente com as alterações pontuais que o PS validar — por ter maioria absoluta no parlamento, o PS controla completamente o conteúdo do relatório. E é isto que me justifica dois pontos de reflexão.

O primeiro ponto é o dano que este relatório causa no prestígio da Assembleia da República, atirando-a para o descrédito total. Tem de se lamentar que, numa comissão com poderes especiais (justificados pela missão de apurar a verdade), uma maioria absoluta simples sirva de instrumento para um partido elaborar uma ficção, manipular os factos e criar uma realidade paralela à medida da sua conveniência política. Ao fazê-lo, o PS atacou a instituição parlamentar. E ao fazê-lo ao abrigo de uma maioria absoluta, o PS expôs uma fragilidade democrática que deveria ser corrigida: tal como já sucede em várias matérias e instâncias parlamentares, seria benéfico que as votações nas comissões de inquérito, dado o seu carácter especial, dependessem de maiorias de 2/3 (dois terços) dos deputados. Esta condição obrigaria à negociação entre partidos e, forçosamente, levaria à produção de relatórios que fossem além dos interesses do partido dominante — atribuindo força e relevância às suas conclusões, o que é particularmente importante numa comissão de inquérito.

O segundo ponto é que o PS já nem disfarça o seu (cada vez maior) problema com a verdade. A desfaçatez com que o relatório preliminar da CPI ignora factos e reinterpreta acontecimentos revela um completo desligamento à realidade, demonstra como a prioridade dos socialistas se reduz à defesa dos seus interesses partidários, e exibe uma soberba própria de quem acredita que a maioria absoluta legitima um estatuto de donos disto tudo. O PS cria ficções à sua medida para todo e qualquer dossier incómodo. E isto é tão evidente que, desconfio, se tornará contraproducente para os próprios socialistas: um partido que opta por este comportamento está a comprometer a sua credibilidade e a degradar a sua imagem face aos cidadãos e eleitores. A continuar neste caminho, o PS põe-se a jeito para pagar uma pesada factura eleitoral.

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