O tema é em si mesmo relativamente claro. A utilização de armas químicas está proibida por tratados internacionais desde o Protocolo de Genebra de 1925 e foi reafirmado pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1992. Por esta razão, a intervenção unilateral norte-americana da passada sexta-feira foi desencadeada para sinalizar que a quebra da lei internacional não passará incólume — sobretudo depois de a Rússia ter anunciado que vetaria qualquer resolução do Conselho de Segurança contra a bárbara e ilegal actuação do regime de Assad no início da semana passada. Foi, além disso, uma acção militar criteriosamente limitada a um alvo militar e previamente anunciada aos governos aliados e até às autoridades russas e sírias.

“A América está de volta!”, disse com emoção Mitch McConnel, líder da maioria republicana no Senado. E poderia ter acrescentado: “e o Ocidente também”. Esse foi o claro sinal emitido pela Chanceler Merkel, Presidente Hollande, primeira-ministra May, Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, entre muitos outros líderes do Ocidente. Todos apoiaram a intervenção norte-americana para sinalizar que a violação da lei internacional não ficará impune.

Quem não gostou foram os mesmos do costume: além do sr. Putin (e do Partido Comunista Português), também vários representantes da chamada “alt-right” norte-americana (ex-apoiantes de Donald Trump), o sr Nigel Farage e o sr. Corbyn, no Reino Unido, e a sra. Le Pen, em França, entre muitos outros. Todos são críticos da ordem mundial herdada da vitória das democracias — primeiro a meia-vitória na II Guerra, depois a vitória completa na queda do Muro de Berlim, em 1989.

A grande incógnita que permanece é a de saber o real alcance desta decisão do Presidente Trump. Na mensagem emitida logo após a intervenção militar, Donald Trump disse muito acertadamente:

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“Temos esperança de que — se a América defender a justiça — a paz e a harmonia possam então acabar por prevalecer. Boa noite e que Deus abençoe a América e o mundo inteiro. Obrigado. ”

Estas palavras certamente contrastam com o isolacionismo febril que marcou a campanha eleitoral de Donald Trump e de muitos dos seus apoiantes (alguns dos quais agora o abandonaram). Significam elas que o Presidente Trump está a arrepiar caminho e a reconciliar-se com as traves-mestras da nobre política externa norte-americana desde a II Guerra e queda do Muro de Berlim?

Ninguém pode saber ao certo. Charles Moore, biógrafo autorizado de Margaret Thatcher, alvitrou com esperança a seguinte hipótese no Telegraph de Londres:

“Será possível que o grande perturbador esteja mais interessado em combater a guerra civil cultural no seu próprio país, e fique satisfeito em deixar que a paz do mundo seja ordenada pelo mesmo ‘establishment’ imperial americano que tem dirigido as coisas desde 1945?”

É seguramente uma hipótese esperançosa. De certa forma, exprimi aqui no Observador uma esperança semelhante, logo após a eleição do Presidente Trump: “É certo que só em ‘estado de graça’ pós-eleitoral (num ‘sistema’ democrático) seria possível comparar Donald Trump com Ronald Reagan. Mas, se o presidente eleito — que não parece particularmente favorável ao comércio livre e à causa democrática no mundo — quisesse ainda assim emular Ronald Reagan, um conselho muito simples deveria ser destacado: ‘deixe o ‘sistema’ funcionar’.

Ronald Reagan sabiamente gostava de dizer: ‘parece que o trabalho árduo nunca matou ninguém; mas eu não quero correr riscos desnecessários.’ Por isso, ele tinha um horário relativamente leve (nunca perdendo a sesta diária, à semelhança de Churchill), e não se dedicava a detalhes desnecessários. Sobretudo, concentrou-se na escolha de uma equipa governativa de luxo — de Republicanos de longa data — nos quais confiava e delegava.

Se não seguir a sabedoria de Ronald Reagan, é muito expectável que o presidente eleito Donald Trump venha a ter de enfrentar a sabedoria da democracia americana — o tal ‘sistema’ que, afinal, não estava ‘viciado’.”

Não sei se é necessário sublinhar que se tratava de uma esperança politicamente incorrecta: confiava mais na tradição do que na inovação revolucionária; mais nas instituições do que nos “líderes fortes” que falam em nome do “povo” contra as “elites”. Era, em suma, uma esperança no improvável, mas não impossível, regresso do Ocidente.