Estávamos todos enganados. Pensamos que as eleições presidenciais seriam importantes. Achávamos que Marcelo Rebelo de Sousa deveria tomar posições políticas fortes, sem renegar o seu passado, conquistar um mandato forte para ganhar margem de manobra para o futuro e que deveria dizer claramente o que pensa sobre a Europa, sobre a extrema-esquerda no poder e sobre outros assuntos relevantes. Obviamente, estávamos a levar a eleição presidencial e a função do Presidente da República demasiado a serio. Continuamos reféns do semi-presidencialismo.

Mas afinal as eleições presidenciais são quase irrelevantes. Ninguém liga à campanha. Ruas quase vazias, salas (pequenas) semi-cheias. Maria de Belém e Sampaio da Nóvoa bem se empenham, mas ninguém lhes dá muita importância. Pelos sinais da campanha, os portugueses aceitam a eleição presidencial como uma espécie de ritual democrático. Ninguém se recorda de uma eleição de mudança de ciclo presidencial que causasse tanta indiferença. Onde está o dramatismo da eleição Mário Soares-Freitas do Amaral? Desapareceu completamente. Esta eleição nem sequer se compara, em termos de carga política, aos confrontos Sampaio-Cavaco, Cavaco-Soares e Cavaco-Alegre.

Rebelo de Sousa foi o único candidato que percebeu que deveria fazer campanha para uma maioria de indiferentes. Todos os outros candidatos (apenas os outros 5 que contam; o resto não passa de folclore deprimente, mascarado de democracia) esforçam-se para introduzir uma dimensão política na campanha, mas sem sucesso. À indiferença dos portugueses, Rebelo de Sousa respondeu com uma campanha simples e quase basista. Está a visitar umas pessoas pelo país fora (como antigamente, o fidalgo de província visitava as aldeias da paróquia). E tem jeito para isso. A sua naturalidade com bebés e velhinhos é admirável. Dança, conta anedotas, dá lições sobre medicamentos em farmácias, fala de futebol e está sempre à vontade com todos.

No entanto, tendo em conta a situação do país, os últimos quatro anos, e o modo como o governo socialista chegou ao poder, muitos pensariam que esta eleição seria tudo menos insignificante. Como pode um país em crise desvalorizar uma eleição presidencial? A resposta é simples: a crise europeia acabou com o semi-presidencialismo. A crise de 2011 foi uma crise nacional e, simultaneamente, uma crise europeia. Ora os portugueses perceberam dois pontos essenciais durante a crise: muitas das decisões que contam são tomadas em Bruxelas, e o governo e que participa nessas decisões. O Presidente da República é irrelevante para a política de Portugal na Europa. A crise demonstrou-o. Os portugueses passam a vida a ouvir que Merkel manda na Europa. Por isso, os políticos que contam são os que encontram Merkel. Vejam como Costa cada vez que vai a um Conselho Europeu é fotografado ao lado de Merkel. O Presidente não se encontra com a Chanceler alemã, nem sequer vai aos Conselhos Europeus. Para a maioria dos portugueses, isso significa que não conta politicamente. Quando a Europa ocupa o centro da política nacional, o Presidente (e o semi-presidencialismo) são relegados para a periferia. Cavaco foi vítima destas circunstâncias políticas novas. Não foi o culpado.

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Se a crise europeia pode levar ao fim do semi-presidencialismo, a actual campanha eleitoral está a mostrar a quase irrelevância da Presidência da República. Daí, a revisão constitucional (informal) em curso, levada a cabo por um Professor de Direito e pela maioria dos portugueses. Quando a realidade muda, algumas normas jurídicas (mesmo as constitucionais) perdem relevância.

Rebelo de Sousa poderia ter feito uma campanha diferente. Poderia ter decidido defender o semi-presidencialismo contra a irrelevância a que foi condenado pela crise europeia. Mas não seria uma campanha fácil. Teria que ter dito que só depois de conhecer o orçamento e que poderia saber se o vetaria ou se o aprovaria. Poderia dizer que iria fiscalizar com rigor o acordo sólido, duradouro e sustentável entre o PS, o BE e o PCP, em vez de apoiar incondicionalmente o governo de Costa.

Rebelo de Sousa resolveu fazer uma campanha dizendo que tudo fará para que não haja uma crise política nacional. No regime semi-presidencial, os Presidentes só contam quando há crises políticas. Ao factor externo (crise europeia, que não vai acabar cedo), Rebelo de Sousa juntou uma estratégia interna de subordinação ao governo que contribuirá ainda mais para a irrelevância da Presidência.

Esta campanha mostra de um modo muito claro que o semi-presidencialismo foi criado para um Portugal que já não existe. Um país que estava fora da Comunidade Europeia e que tinha o escudo. Esse mundo acabou, e com ele o regime semi-presidencial chegou ao fim.

Se Portugal fosse um país racional e coerente politicamente, haveria uma revisão constitucional para consagrar o parlamentarismo e introduzir a eleição presidencial no Parlamento. Mas isso não irá acontecer. Para a esquerda, a Constituição é um texto sagrado (uma espécie de Bíblia da democracia nacional) e nos textos de natureza religiosa não se toca. Ora, sem a esquerda, não há revisão constitucional.

Para ser eleito na primeira volta, Rebelo de Sousa está a fazer tudo para transformar a eleição presidencial num exercício político irrelevante; e que ele é a pessoa certa para um cargo igualmente irrelevante. Reconheço-lhe um mérito. Foi o primeiro a perceber a irrelevância do que o espera. Como mostra a campanha que está a fazer.